Deu na Agência Carta Maior:
Análise & Opinião
DEBATE ABERTO
Por causa do Sete de Setembro de 1822, muita história rola debaixo das nossas pontes. Grande parte dela, construída seletivamente a posteriori, como é comum. Por que, durante tanto tempo, Palmares não fez parte do nosso panteão da Independência?
Francisco Carlos Teixeira
Poderíamos dizer que o ofício do historiador é, acima de tudo, gerir silêncios e hierarquizar memórias. Hoje é aceito por todos, mesmo fora do âmbito estritamente acadêmico, que a leitura única e unificadora da história não é possível e, tão pouco, desejável. É neste sentido que a história é escrita e re-escrita inúmeras vezes, conforme o lugar de fala do seu narrador. Assim, boa parte da narrativa histórica é tecnicamente conversa entre historiadores. De posse do rigor do método, e sob a luz de teorias variadas – aí estão os ditos lugares de fala – os processos históricos são lidos e relidos, “in corsi” e “ricorsi”.
A Independência como história Oficial
As sociedades modernas, em especial as sul-americanas, estão nos dias de hoje mergulhadas numa verdadeira fome de história. Talvez seja em virtude do avanço da sociedade de massas, industrial ou pós-industrial, com a dissolução de valores e culturas numa imensa sopa global. A história guardaria a memória que identifica, que cria laços, que aglutina e que, ao erguer pontes para o futuro, permite a emergência de modernas utopias que dão algum sentido à vida de milhões de pessoas. Só para não ir muito longe, podemos perceber com clareza como hoje, no nosso continente, a imagem dos Libertadores da América – Bolívar, San Martin, José Bonifácio, etc... – moldam as utopias de construção de um mundo mais justo e melhor. Esta é uma das possíveis releitura da história.
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Implica em uma nítida linearidade entre 1710 – a chamada Guerra dos Mascates, entre Olinda e Recife – até 1789, ou seja, a data da devassa contra os Inconfidentes de Minas Gerais. Assim, todo o século XVIII colonial seria uma longa preparação para a Independência, que culminaria no 7 de setembro de 1822.
1. as escolhas dos fenômenos históricos – Pernambuco, 1710 e Vila Rica 1720 e 1789 são no mínimo arbitrárias, e bastante difícil nos casos de 1710 (Guerra dos Mascates) e 1720 (Revolta de Felipe dos Santos) identificar uma proposta de Independência;
2. deu-se uma notável exclusão de outros fenômenos históricos como 1687 – a Guerra de Palmares - e 1798 – A Inconfidência Baiana ou dita “dos Alfaiates” - em favor destes, o que explicita uma compreensão social e politicamente discutível da história;
3. como colocar 1789 – uma revolta republicana - em relação direta com 1822 um ato de fundação de Império?
4. por fim, quando surgem as bases do Estado Nacional no Brasil?
Construindo o 7 de Setembro de 1822
Os chamados “Movimentos Nativistas” remontariam a 1710 e 1720, incluiria um sentido nacional às Guerras Holandesas e criariam um solo fértil para a Independência do Brasil em 1822. As dificuldades na aceitação de tal sentido da história do Brasil decorrem da ausência de uma rigorosa crítica dos sentidos embutidos, no mais das vezes pelo próprio historiador, na sucessão de eventos denominada de “processo histórico”.
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A idéia nacional é mais complexa do que o desejo de não pagar os quintos d´El Rey.
A narrativa edificante
A construção de uma linha reta, entre Felipe dos Santos e Tiradentes, apontando a Inconfidência Mineira de 1789 como filha madura, embora infeliz, do levante de Vila Rica de 1720, é tão somente uma construção “a posteriori” visando criar uma narrativa edificante e fincando fundo no passado o ardor autonomista brasileiro. Vários historiadores não profissionais, tendo à frente Gustavo Barroso, – um nacionalista próximo do fascismo – promoveram tal visão teleológica e “post-factum” da história. Nisso foi acompanhado por historiadores que formaram toda a geração dos anos ´40 e ´50, como, entre outros, Jonatas Serrano. Com acesso rápido e sistemático às paginas de jornais e revistas, longe das pesquisas arquivísticas e do debate sobre o verdadeiro caráter das sociedades ditas de Antigo Regime, tal visão edificante da história do Brasil – quer dizer, a reafirmação da idéia que sempre lutamos pela independência nacional – pouco mais é do que uma construção artificial do passado.
As Guerras Holandesas ou Insurreição Pernambucana
Outro grande eixo da construção do “Nativismo” enquanto ideologia organizou-se em torno das Guerras Holandesas travadas no Nordeste do país. A invasão fora causada pela ocupação do trono de Portugal por Felipe II de Habsburgo, arqui-inimigo da República das Províncias Unidas. Calvinista, republicana e mercantil, a Holanda rompera seus vínculos com a Espanha católica, agrária e barroca, e aliara-se ao Reino de Portugal, este também inimigo de Madrid. Após o desastre de Alcacer-Quibir e do reinado crepuscular do Rei-Cardeal Henrique, Portugal sucumbe ao poder espanhol, realizando desde 1580 até 1640 a União Ibérica. O Brasil tornava-se consequentemente espanhol. Os investimentos holandeses, em boa parte de cristão-novos, sentiram a dureza da mão espanhola e os interesses batavos foram feridos. A Resposta da Junta do Comércio da Companhia das Índias Ocidentais foi imediata: primeiro o ataque a Cidade de Salvador (1624-1625), fracassado e em seguida contra Pernambuco (1630-1654), onde enfim se instalam e assumem os negócios do complexo açucareiro.
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Devemos ainda nos ocupar de outro aspecto da construção das Guerras Holandesas – ou da Insurreição Pernambucana, de forma mais restrita: a união das raças na construção do Brasil. Somar as personas sociais e étnicas de André Vidal Negreiros – paraibano branco e brasileiro; com João Fernandes Vieira, rico português senhor de engenhos; Felipe Camarão – índio próximo dos portugueses, e, enfim, Henrique Dias, negro forro, é uma imposição “a posteriori”, estranha ao processo social e político da época. Apenas para aclarar um ponto: a ação de Henrique Dias, o corajoso e robusto negro que desafiava os holandeses nas suas correrias através do Pernambuco – não resultou em qualquer alteração do estatuto social de sua gente, que eram escravos e continuariam escravos até o final do século XIX.
Onde fica Palmares na História?
De qualquer forma, é interessante notar que tais historiadores-publicistas, historiadores-ideólogos da Nação brasileira, nos anos ´30 e ´40 se recusassem a colocar “pari passu” na linha genealógico-genética da independência do Brasil o movimento que mais tempo lutou contra a Coroa de Portugal e reuniu o maior número de participantes: a Guerra de Palmares. Reunidos num conjunto de cidadelas autônomas, na Serra da Barriga em Alagoas, e com 20 mil habitantes, Palmares - maior do que Vila Rica - resistiu desde 1687 até 1697 aos avanços dos sitiantes. Daí o honroso epíteto de “Tróia Negra”.
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Era o 20 de novembro de 1695.
Ora, em Palmares havia cessado a soberania da Coroa portuguesa, não se davam vivas a El-Rey e ninguém jurou lealdade à dinastia de Bragança. O que faz então que tais homens não possam juntar-se ao panteão dos libertadores da pátria? Seria o fato de serem negros, pobres, mestiços? A pátria, contudo não faz distinção. Palmares, na sua radicalidade social e política, foi o primeiro troço do solo brasileiro a se emancipar, temporariamente é verdade, da soberania lusitana.
Os Inconfidentes
Somente mais tarde, e ainda nas Minas Gerais, é que a idéia de uma soberania própria, autônoma e uma constituição republicana marcará presença entre nós. Mesmo então apenas uma dimensão de independência será posta: a constituição da soberania do Estado. A superação da condição colonial – para além da superação do estatuto jurídico colonial – não será colocada pelos Inconfidentes. A Arcádia Mineira seria uma república aristocrata, muito próxima aos moldes sonhados pelos confederados rebeldes em face da União Americana. A condição colonial – ou seja, o conjunto de estruturas montados pela Metrópole nas terras do Novo Mundo e cuja a explicitação se dava através do trabalho escravo, o latifúndio e a monocultura – não seria questionada pela elite mineira envolvida na conspiração contra a Coroa Portuguesa. Teríamos que esperar os trabalhos de José Bonifácio de Andrada e Silva, já nos dias da emancipação política, para se discutir a abolição da escravidão e a justa e eficaz distribuição de terras. Mesmo então, na Assembléia Constituinte de 1823, os projetos de Andrada serão barrados. O debate se dará, ainda uma vez, no final do século XIX, com homens como Ruy Barbosa e Rodolfo Dantas, que ainda identificavam na díade latifúndio-escravidão uma real ameaça à soberania e a unidade nacional. Contudo, ainda uma vez, o debate será bloqueado e somente em 1930 – quando de fato a República é proclamada no Brasil – o Brasil enquanto feitoria colonial será superado. As reformas dos anos ´30 até o início dos ´60, com todos os seus erros e mesmo brutalidade, foi primeiro momento onde a República buscou incluir os trabalhadores – reconhecidos como atores políticos e sociais, mesmo que ainda atrelados ao poder do Estado -, tentou limitar a atuação da elite latifundiária, impondo a industrialização e permitindo a emergência de uma sociedade civil autônoma. Na verdade, somente nestes anos de lutas, tumultos e decepções – mas, também, de muita ousadia e esperança – compreendeu-se a urgência do alinhamento da emancipação política com a superação da condição colonial herdada pelo Brasil.
Próxima Semana: Os limites da Independência do Príncipe Pedro.
Francisco Carlos Teixeira é professor Titular de História Moderna e Contemporânea da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Leia na íntegra em: http://www.cartamaior.com.br/templates/analiseMostrar.cfm?coluna_id=3715
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