Esta é a análise de conjuntura apresentada à reunião do CONSEP da CNBB.
Deu na Adital:
Pedro A. Ribeiro de Oliveira*
Apresentação
Após um intervalo de seis meses, a análise de conjuntura retoma sua forma habitual para apresentação na reunião do CONSEP. Inicia-se com um breve panorama das grandes questões da atualidade mundial e latino-americana; em seguida, examina os rumos que vêm sendo traçados pelo segundo mandato do Presidente Lula e as reações da sociedade; conclui com um informe sobre problemas e projetos do Congresso Nacional.
I. Instabilidades de âmbito mundial
É sensível o clima de instabilidade mundial, que se torna bem nítido em quatro grandes campos: a diminuição da hegemonia dos EUA, as diversas formas de violência entre os povos, o desequilíbrio ecológico e a crise financeira global. Este tópico se conclui com uma breve análise dos reflexos dessas instabilidades no processo de integração regional.
Rumo a um mundo multipolar
Assistimos a uma evolução rápida e profunda da paisagem política mundial. Os EUA estão perdendo sua hegemonia (situação na qual o poder é aceito e consentido pelos subalternos, porque acreditam que é exercido em prol do bem geral) e apóiam-se apenas sobre sua força tecnológica e militar. Mas não há outro país ou região capaz de contrabalançá-los. A União Européia é economicamente forte, mas até agora não conseguiu construir uma política comum para os 27 países membros. O Japão, que nos anos 1980 despontara como novo pólo econômico mundial, foi forçado a valorizar sua moeda e sua economia perdeu o dinamismo. Neste contexto, aumenta o peso dos países emergentes, tanto no campo econômico quanto no político.
A China está na frente, seguida de perto pela Índia. A onda de crescimento econômico atinge toda a região asiática, que abriga também centros importantes de tecnologia de ponta. A Rússia, que dispõe de imensos recursos naturais, especialmente no campo energético, conserva sua força militar, assegurando assim um lugar privilegiado nas negociações internacionais. O Brasil, que se junta à China, Índia e Rússia, como um dos "novos grandes" emergentes, só tem posição estratégica no agronegócio. Os imensos investimentos para a produção de bioenergia aumentam suas perspectivas de poder no mercado mundial. Estes quatro países empenham-se em mudar as regras do comércio mundial, sempre favoráveis aos mais poderosos, mas a "rodada de Doha" continua em ponto morto. Além disso, as rédeas do FMI e do Banco Mundial permanecem nas mãos dos EUA e da Europa.
A China já se constitui num novo pólo mundial, na medida em que dela depende a estabilidade financeira do sistema (por ser a principal compradora dos títulos do tesouro americano) mas sua economia está superaquecida e há uma grande rivalidade entre ela e os outros países, que temem a sua supremacia. Isso pode ser percebido na África, que começa a reagir diante da compra geral do continente pela China.
Ruídos de guerra
A guerra-raiz dos principais conflitos mundiais no último meio-século é a guerra não declarada entre o Estado de Israel e o Povo palestino, porque está na base das tensões entre o Ocidente e o Islã. A divisão entre as duas principais organizações palestinas - o Fatah e o Hamas - afastam ainda mais as perspectivas de retomada do processo de paz.
O isolamento político de Bush deixa aumentar a pressão do Congresso e da população em favor da retirada das tropas do Iraque. As eleições para a Casa Branca em novembro de 2008, podem sinalizar mudanças, mas ainda não se vê medidas viáveis para a reconstrução do Iraque, dilacerado pela violência da ocupação dos Estados Unidos e seus aliados. A situação caótica no Iraque gera mais violência em quase todo o Oriente Médio. O presidente do Irã não nega que o país esteja a caminho da construção de armas nucleares e há uma real ameaça de destruição de suas usinas por Israel, com ou sem a cumplicidade do Ocidente. Há atentados no Afeganistão, onde os talibãs estão de volta, no Paquistão e até na Argélia. Bin Laden está vivo e as guerras de Bush lhe deram muitos seguidores. O terrorismo não acabou, muito pelo contrário: os serviços de segurança desarmaram, no último momento, atentados no Reino Unido e na Alemanha. Por que na Alemanha que nunca apoiou a guerra no Iraque e que acaba de construir uma mesquita em Berlim? Em vários países, inclusive da Europa, o clima de terrorismo é propício ao desrespeito aos direitos humanos, a exemplo do que ocorre nos EUA.
Na África registram-se pequenos avanços em relação ao conflito de Darfur, que desde 2003 matou 300.000 pessoas, deslocou mais de 2 milhões e atingiu a vida de 4 milhões de pessoas, porque o Sudão declara-se disposto a aceitar a presença de uma força de segurança com 33.000 soldados da União Africana e da ONU. A ajuda humanitária em zona de conflitos torna-se impotente; mas, ao ser protegida por soldados, desfigura-se.
O aquecimento do Planeta
A situação climática piorou. Nos últimos meses houve um aumento das inundações, canículas, incêndios e furacões. Nenhum continente escapou dessas situações climáticas extremas. Na Ásia, a pior monção na lembrança humana fez mais de 2.200 mortos e 30 milhões de sinistrados. O aquecimento global acentuou as inundações. Os muitos estudos recentes não são animadores. A penúria de água poderá atingir três bilhões de pessoas. Enquanto em Viena se preparam as negociações pós-Kioto, os EUA nem ao menos assinaram aquele protocolo. Se, por um lado, cresce no mundo a consciência da população sobre a responsabilidade humana pelo desequilíbrio ecológico, por outro lado cresce também a indústria automobilística e o consumo de combustíveis.
Mercado financeiro
A crise financeira se desenvolve além e aquém do contexto geopolítico global acima observado, mostrando ao mesmo tempo a vulnerabilidade e fragilidade do sistema, bem como a sua força de integração. Ao inundar o mercado mundial de liquidez monetária, os bancos centrais impediram a paralisia do sistema bancário. Se houvesse a mesma coordenação e rapidez de esforços para salvar vidas humanas e construir a paz, o mundo seria bem melhor... A Pacem in Terris lançou a idéia da instância governativa mundial - federativa, democrática, pluralista e participativa - para administrar as questões de interesse global. Mas as instâncias políticas internacionais nem de longe têm a mesma vontade e capacidade de intervenção que os diretores de bancos centrais, sempre cuidadosos quando se trata da "saúde" do mercado financeiro.
Dada sua atualidade, cabe aqui um breve esclarecimento sobre a natureza dessa crise.
Quando em 1929 (começando nos Estados Unidos) as bolsas desabaram, os estados nações entenderam, pelo caminho penoso dos fatos, que precisavam de bancos centrais com função reguladora. O problema decorre da capacidade das entidades financeiras para gerar meios de pagamento. Um exemplo: Tiago deposita R$1.000, o banco empresta 800 a Tadeu, que os paga a Bartolomeu que compra debêntures com os R$800, depositando o cheque em outro banco. Se o dinheiro continuar rodando, aqueles "mesmos" R$1.000 iniciais permitirão que diversas empresas e indivíduos paguem quantia muito maior. Os bancos centrais têm a função de regular e determinar parâmetros de depósitos, empréstimos e investimentos, de modo a controlar essa capacidade bancária de gerar meios de pagamentos desproporcionais à economia real. Algo semelhante se passa com o aumento de valor das ações de uma empresa devido à expectativa de terceiros quanto ao aumento de seus lucros. Como o desenrolar da economia real é bem mais lento que os processos financeiros, pode ocorrer um enorme hiato entre o valor financeiro dos papéis e o valor real do patrimônio da empresa. Na atual crise, o hiato se deu no mercado imobiliário: a facilidade de empréstimos elevou o preço das casas, que agora são vendidas muito abaixo daquele valor.
A globalização dos mercados, nos últimos 30 anos, permitiu às instituições financeiras uma atuação transnacional e praticamente fora de controle, dado seu sucesso em convencer a opinião pública, da necessidade de bancos centrais autônomos perante os governos , em nome de resguardar decisões técnicas contra a influência de políticos. Mesmo na Alemanha, cuja primeira ministra vem se empenhando em criar mecanismos internacionais de controle das mega-operações financeiras, os bancos têm mais poder real sobre os parceiros da Alemanha - e sobre o governo alemão - que o inverso.
É fantástica a diversidade dos fundos financeiros em matéria de especulação, pois podem assentar-se sobre cinco até sete "andares" de reservas de valor e meios de pagamento escriturais (em papel ou virtuais). Basta que se instale a desconfiança no primeiro andar (a operação geradora dos "derivativos") para que os detentores de títulos corram a resgatá-los. Para evitar essa corrida, os bancos centrais europeus injetaram bilhões de dólares no circuito bancário. Não tendo meios de ação preventiva, resta-lhes evitar que "o pior" aconteça. Boa parte do custo dessa operação recai sobre os contribuintes, uma vez que os bancos receberão empréstimos públicos em condições especiais. Mais: a operação de salvamento assegura aos banqueiros que podem correr riscos porque serão resgatados pelos bancos centrais. Não abrirão falência como em 1929 e poderão manter a estratégia de privatização dos ganhos e socialização dos prejuízos.
Reflexos na América Latina
A globalização dos mercados puxa necessariamente a integração econômica regional. Nos 15 últimos anos, com altos e baixos, a América Latina veio passando por um processo irreversível de integração. O que está em jogo é se essa integração vai se dar de forma autônoma, ou se subordinada à economia estadunidense, como foi a proposta da ALCA.
Lula e Kirchner fizeram avançar a consolidação do Mercosul, com o Parlatino. Mas ainda lhe falta melhor definição institucional. A Unasul (União de Nações Sul-Americanas) é o novo nome da Comunidade Sul-americana das Nações, criada em 2004, com o objetivo de integrar o Mercosul e o Pacto Andino. Até agora o processo de integração foi sobretudo comercial, mas a questão energética e as negociações para a criação de um banco comum- o Banco do Sul - abrem novas dimensões para a integração.
Empresas transnacionais e grandes bancos, com o apoio dos organismos financeiros internacionais, também querem implementar projetos de infra-estrutura (vias de transporte e energia), na linha da privatização dos planos de desenvolvimento e integração regionais.
Há problemas de ordem política a serem superados. Uruguai e Paraguai queixam-se de ser tratados como menores, e esta é uma questão a ser encarada realisticamente. O presidente Chávez, da Venezuela, quer uma definição política para a integração, sem deixá-la ao sabor do mercado, mas encontra fortes resistências, inclusive do Congresso Brasileiro. Ele aponta a ALBA (Alternativa Bolivariana para as Américas) como meio de superar uma integração limitada ao econômico e realizar uma integração que chegue também à área política e cultural, com ênfase na saúde e na educação dos povos. Na realidade, cada governo defende seus interesses, sem subordiná-los aos interesses comuns e que só podem ser alcançados se houver unidade regional.
Atualmente, o processo de integração autônoma é puxado por oito países (Argentina, Bolívia, Brasil, Cuba, Equador, Nicarágua, Uruguai e Venezuela). No entanto, sua unidade se dá mais em contraposição ao projeto da ALCA - ou aos TLCs igualmente danosos - do que em torno a um projeto comum. O Brasil tem andado um pouco sozinho. Faz o seu jogo, mas não cumpre a função de locomotiva.
A situação política (perda de hegemonia dos EUA) e econômica (anos seguidos de crescimento do PIB mundial) favorecem a integração, mas falta uma tradição de negociação entre os países região e ainda há a oposição dos EUA a qualquer projeto de integração que possa diminuir sua influência.
II. A política econômica e os rumos do segundo governo Lula
O governo brasileiro está festejando nossa imunidade diante da crise financeira. De fato, nossas reservas, as exportações e a confiança dos mercados financeiros na estabilidade política (leia-se: na continuidade da política econômica) blindaram nossa economia. É como o dono da birosca na favela, que paga "pedágio" para não ser assaltado. O que está em questão é o custo econômico, social e político dessa blindagem.
A atual política econômica dá continuidade à linha implantada desde o governo Collor, com ampla abertura dos mercados brasileiros aos capitais externos. A diferença reside no atual aquecimento da economia mundial, puxada pelos países asiáticos, que fez crescer enormemente as exportações brasileiras puxadas pelo agronegócio e pela mineração. Ou seja, o Brasil encontrou seu lugar na economia globalizada: produtor de matérias-primas de alto custo ecológico e pouco valor agregado. Enquanto as economias mais avançadas precisarem de soja, carnes, produtos florestais, açúcar e álcool, bem como minerais e ferro-gusa, a economia brasileira poderá crescer sem inflação, por causa do superávit na balança comercial. Além disso, a abertura cambial e a manutenção das altas taxas de juros, atraem muito capital para o mercado financeiro. As reservas cambiais já superam 160 bilhões de dólares. Elas blindam o Brasil contra um ataque especulativo, mas são praticamente esterilizadas porque aplicadas em títulos do Tesouro dos EUA, cujas taxas de juros são irrisórias, se comparadas às taxas pagas pelo Tesouro brasileiro a seus credores. O Brasil continua sendo um porto seguro e um paraíso para a especulação financeira.
Um sinal dessa subordinação da política econômica ao sistema financeiro é o aumento do superávit primário (isto é, a economia de receitas realizada pelo poder público para o serviço da dívida) desde o primeiro governo Lula. No primeiro semestre deste ano ele atingiu quase R$80 bilhões. Isso corresponde a 5,58% do PIB, superando a meta estipulada pelo governo de 3,8% do PIB (no último ano do governo FHC chegou a 3,89%). Apesar do enorme esforço, essa quantia não tem sido suficiente para pagar a totalidade dos juros (R$160 bilhões em 2006), o que faz aumentar o total da dívida pública (hoje quase R$ 1,3 trilhão). Tem sido eficiente, contudo, para reduzir a relação da dívida do setor público sobre o PIB: hoje ela corresponde a 44,4% , enquanto no final do governo FHC ela havia chegado a 55,5%.
Esta situação de estabilidade monetária, com a inflação sob controle, seria ideal para impulsionar um projeto de desenvolvimento do país, mas falta vontade política que obrigue os capitais especulativos a se transformarem em investimentos produtivos. O governo brasileiro abriu mão do controle sobre o Banco Central, que está a serviço do sistema financeiro globalizado (ao contrário dos EUA, cujo banco central - FED - é acionado para implementar uma política de crescimento e garantir o nível do emprego). Assim, a economia brasileira segue a reboque dos países mais dinâmicos, e já é motivo de festejo o anúncio de que neste ano ela não crescerá menos do que a média mundial.
Esses fatos recentes confirmam o que havíamos dito na análise de conjuntura do mês de março. Apontando o primado das finanças sobre a produção e a hegemonia do agronegócio de exportação no setor produtivo, como os dois tentáculos que cerceiam o desenvolvimento brasileiro, ela concluía criticando o dualismo político do governo Lula: "por um lado, prevaleceu o culto aos contratos, o pagamento fiel dos juros, a defesa e o perdão das dívidas de grandes proprietários e as isenções fiscais para o capital financeiro e as grandes fortunas, enquanto o volume de impostos e taxas sobre o conjunto da população subiu a quase 40% do PIB. Por outro lado, deu um novo papel aos bancos públicos, para favorecer o acesso dos pobres (abertura de 3,8 milhões de contas até 2006 e mais de 3 milhões de empréstimos, com valor médio de R$ 400,00.) Também mudou o papel do BNDES, antes utilizado para a privatização de empresas públicas, hoje fortalecendo o desenvolvimento industrial, apoiando empresas em crise e ainda impulsionando cooperativas de trabalhadores. Vai no mesmo sentido a recuperação do salário mínimo, o incentivo à agricultura familiar, o investimento no setor de energia e saneamento, a Bolsa Família, o incentivo às escolas técnicas, a implementação do ProUni, a manutenção do piso das aposentadorias e pensões do INSS, sem esquecer o avanço em políticas públicas para mulheres e a promoção da igualdade étnico-racial." Hoje poderíamos acrescentar o avanço na política de Direitos Humanos, com a publicação do livro "Direito à Memória e à Verdade", pela Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República e a Comissão de Mortos e Desaparecidos Políticos.
Ao que tudo indica, este será o rumo do governo Lula até 2010: deixar o comando da política econômica nas mãos do capital financeiro e do agronegócio e implementar políticas sociais em benefício das massas empobrecidas. Enquanto as exportações derem bom retorno financeiro e o PIB crescer, esse dualismo político poderá funcionar, ficando satisfeitas tanto a casa-grande quanto a senzala. Caso sobrevenha uma crise de âmbito global, o custo terá que recair sobre o conjunto da população, mas - como de hábito -a casa grande provavelmente estará blindada.
III . Sinais de reação na Sociedade
A reeleição de Lula não aumentou a participação da sociedade civil organizada na definição das políticas de governo. Ao contrário, no atual mandato o governo está menos aberto ao diálogo com os setores sociais descontentes do que antes. O presidente demonstra ter consciência de que seu governo não abala as estruturas herdadas da colônia e que mantém o Brasil em posição subordinada no sistema econômico mundial. Seu projeto de modernização - evidente em seu fascínio pelo etanol e outras fontes de bioenergia - deixa praticamente intocada a estrutura fundiária (a reforma agrária saiu da agenda), não se opõe ao clientelismo imperante na política, nem contraria os interesses econômicos e financeiros dos milionários. Essa diferença entre o candidato da Frente Popular em 1989 e o atual Presidente da República repercute nas suas relações com a sociedade.
Reações diferenciadas
Deixando de lado a "maioria silenciosa" - favorável ao governo Lula mas que só tem peso político no período eleitoral - pode-se distinguir na sociedade brasileira três tipos de manifestações públicas em relação ao governo.
A primeira é formada pelos setores conservadores, que por diversas razões prefeririam ter outra pessoa que não Lula na presidência da República. Este setor da opinião pública se faz muito presente na mídia, principalmente por meio de colunistas e editorialistas que sempre encontram uma maneira de responsabilizar o presidente pelos males do país. A cobertura do acidente da TAM, no aeroporto de Congonhas, é um bom exemplo. O movimento "cansei", que já nasceu com pouco fôlego, é outro exemplo. Essas manifestações da opinião pública criticam não só as políticas sociais do governo, mas principalmente a forma de Lula governar: com corrupção, gastos exorbitantes, mal gerenciamento dos recursos, excesso de impostos, apadrinhamento etc. Seu efeito político é manter o governo na defensiva, gastando energia no inútil esforço para mostrar o outro lado da realidade ou até mesmo para desmascarar afirmações enganosas ou levianas.
A segunda corrente é formada por pessoas e grupos que acreditam na proposta política representada por Lula e/ou pelo PT e que se colocam em posição de defesa do seu governo, ainda que de modo crítico (1). Eximem-se de opinar sobre a política econômica, alegando a complexidade do problema, e realçam os feitos do governo Lula em benefício dos mais pobres. Esta corrente, que era muito forte no início do primeiro mandato, veio perdendo substância. Ela continua sendo importante, contudo, como contraposição à primeira, pois é do seu agrado ver Lula na presidência da República.
A terceira corrente pode ser definida como uma dissidência da segunda. Gente que acreditou na proposta representada por Lula, mas que foi perdendo a confiança à medida que se definiam os rumos do governo. O ponto crítico é, certamente a política econômica que multiplica os ganhos financeiros e comprime os investimentos públicos, mas o "ponto de mutação" dessa atitude política situa-se na percepção de que o governo Lula não fará reforma agrária. Aí se dá a ruptura entre essa terceira corrente e o governo Lula. Talvez este seja o dado político mais relevante da atual conjuntura e por isso convém aprofundar mais um pouco a análise.
As eleições de 2002 representaram um grande avanço político para os movimentos sociais e populares, mas os rumos tomados pelo governo Lula os confundiram. Além disso, setores importantes do sindicalismo, da CUT em particular, foram incorporados ao governo e esvaziaram as articulações populares de âmbito mais amplo. Desde então, assistimos a muitas iniciativas rearticulação. A 4ª Semana Social Brasileira e a Campanha das Assembléias populares locais "reinventando a democracia" tiveram um papel positivo para manter alguma mobilização, articular as bases e buscar uma unidade em torno ao debate sobre "o Brasil que queremos". Elas se juntaram para realizar a "Assembléia Popular, Mutirão por um novo Brasil", em outubro de 2005. Mas a dispersão das forças populares ainda é grande: CUT, Conlutas, Intersindical, MST, UNE, Pastorais sociais, Grito dos Excluídos, CMS, Assembléia Popular e muitas outras organizações se esforçam para alcançar melhor articulação e certa unidade, mas tais objetivos ainda parecem distantes. Enfim, há dinamismo organizativo nas bases da sociedade, mas falta-lhes articulação de âmbito nacional. Uma experiência importante, neste sentido, foi o recente Plebiscito popular.
A experiência do 3º Plebiscito popular
A proposta de organizar um 3º Plebiscito Nacional Popular e uma 2ª Assembléia Nacional popular surgiu no começo de 2007, como ações unitárias e autônomas dos movimentos sociais, não pautadas nem pelo apoio nem pela oposição ao governo Lula. Houve convergência sobre o tema "anulação do leilão de privatização da companhia Vale do Rio Doce", mas não sobre os demais (superávit primário, tarifas da energia elétrica e reforma da previdência), porque os setores pro-governamentais os consideraram como contrários ao governo Lula.
A mobilização foi importante, mas tardia. As perguntas - de difícil compreensão - só foram elaboradas em junho, enquanto nos plebiscitos anteriores, a preparação foi bem mais longa. Apesar disso, o plebiscito foi para muitos uma importante escola de formação política e de participação cidadã: um canteiro de construção da democracia participativa. O apoio da Comissão Episcopal para o Serviço da Caridade, Justiça e Paz, não só animou as bases católicas, mas explicitou a participação da Igreja no esforço da sociedade para construir um Brasil melhor. Outros apoios, como do 3º Congresso do PT, tiveram pouco efeito prático.
Como de hábito, a mídia defendeu os interesses do capital privado, silenciando-se sobre o tema. Nas raras vezes em que deu notícias do plebiscito, foi para defender a privatização da Vale e vituperar contra o que ela chama de "atraso" (leia-se todo projeto de desenvolvimento econômico e social não pautado pelo ideário neoliberal).
O próximo passo da mobilização popular deveria ser a 2ª Assembléia Popular em outubro, em Brasília. Mas não é certo que ela venha a realizar-se. Não somente porque o plebiscito consumiu muitas energias, como faltam articulação política, recursos materiais e financeiros.
Dessa experiência fica a constatação de desunião dos movimentos sociais, resultando na distribuição de cédulas diferentes (com quatro ou apenas uma questão). Essa desunião reduziu o alcance do plebiscito, pois não houve a mobilização esperada (2). É bem verdade que a Companhia Vale do Rio Doce articulou campanha contrária, vendendo uma imagem positiva da sua atuação em prol do Brasil. A receptividade dos setores populares ao tema, contudo, mostra que o plebiscito poderia ter recebido muito maior número de votos, se as organizações populares tivessem se envolvido com vontade e se conseguissem atuar coordenadamente. De todo modo, o plebiscito evidencia a rejeição das bases populares ao modelo neoliberal e seu anseio por um modelo de desenvolvimento mais nacionalista, democrático e redistributivo.
Outros itens na pauta dos movimentos sociais
Nos próximos meses serão colocados em pauta dois temas de grande apelo para os setores populares, pois o Executivo prepara duas importantes reformas: a trabalhista e a da previdência social. Estes são campos de luta social e política onde está em jogo a Justiça Social, pois elas podem retirar direitos tanto de trabalhadores e trabalhadoras na ativa, quanto de aposentados e pensionistas.
A Reforma da Previdência realizada no primeiro mandato de Lula pegou desprevenidos os setores populares, obrigando-os a ficar na posição de resistência, que afinal se revelou impotente contra o projeto neoliberal. Hoje é perceptível a mudança na estratégia. Ao verem seus direitos ameaçados, os movimentos sociais estão partindo para a ofensiva, no sentido de dialogar com a população brasileira que não tem sido informada sobre o andamento do projeto nas entranhas do poder executivo. É preciso que a Previdência pública seja reformada, sim, mas para acolher um maior número de brasileiros e brasileiras hoje sem cobertura previdenciária, e não simplesmente para diminuir um pretenso déficit do INSS (que não existiria se 20% dos recursos a ela constitucionalmente destinados não fossem desviados para o pagamento dos juros da dívida pública). Assim, a perspectiva é contrapor ao projeto do governo uma proposta includente. A CNBB tem contribuído para levar o diálogo com o Governo Federal nesse patamar.
A Reforma Política também tem ocupado lugar importante na agenda dos movimentos sociais, pois só será feita sob pressão da sociedade civil. Sobre ela voltaremos mais adiante.
Para concluir, o movimentos dos Povos Indígenas traz as boas notícias: as mudanças no Ministério da Justiça abriram novos horizontes para a política indigenista. Pelo menos três fatos relevantes devem ser assinalados:
• A aprovação pela ONU, da Declaração sobre os Direitos dos Povos Indígenas, com o voto favorável do Brasil e demais países sul-americanos, exceto a Colômbia;
• A assinatura das portarias que declaram como terra indígena os 18 mil hectares reivindicados pelos povos Tupinikim e Guarani e que estavam sob a posse da empresa Aracruz Celulose, no norte do Espírito Santo;
• Criação da Comissão Nacional de Política Indigenista, formada por 20 lideranças de todas as regiões do País (10 com direito a voz e voto e 10 sem voto), 13 representantes de ministérios com ações voltadas a povos indígenas e 2 entidades indigenistas (uma delas é o Cimi).
IV. Notícias do Congresso Nacional
Diminui a confiança no Congresso Nacional
O caso do senador Renan Calheiros, em contínua degradação, e a votação da CPMF atropelaram, nos últimos meses, o andamento de um Congresso já desgastado, diminuindo a confiança dos brasileiros em seus legisladores e na democracia.
Sem dúvida, a cada nova crise envolvendo parlamentares, juízes ou políticos é abalada a confiança dos brasileiros no funcionamento da democracia. Essa é a conclusão de uma pesquisa coordenada por José Álvaro Moisés, da USP, em 2006. O número de pessoas que dizem preferir a democracia a qualquer outro sistema ficou em 68,1%. Em 1989, eram 51%. Apesar dessa preferência, 81% das pessoas desconfiam dos partidos, e 76%, do Congresso. O estudo mostra que 31,5% dos entrevistados acreditam que a democracia pode funcionar sem partidos e 28,7% acham que pode funcionar sem o Congresso. Além disso, 51,8% concordam em algum grau com a idéia de que, "quando há uma situação difícil no Brasil, não importa que o governo passe por cima das leis, do Congresso, das instituições para resolver os problemas do país". A pesquisa também testou o grau de desconfiança. As três instituições em que mais confiam são bombeiros (86,1%), Igreja (75,3%) e Exército (61,4%).
Os brasileiros tendem a ser muito críticos com a corrupção dos políticos. Mas seriam bem mais lenientes se fossem colocados na mesma situação. Enquanto 97,6% condenam o desvio de recursos públicos para uso em campanha eleitoral, 19,4% dizem que, se fossem políticos, fariam caixa 2 "se não tivesse outro jeito", 6,3% fariam às vezes e 4% fariam sempre. A pesquisa conclui que a corrupção "é o sinal mais evidente de que a qualidade da democracia ainda está em questão".
Levantamento recente sobre os parlamentares revela que até o último dia 29/08 havia em tramitação no STF 172 inquéritos e ações penais contra 92 deputados e outras 23 contra 13 senadores. Além do mensalão, em 52 casos o Supremo já encontrou elementos suficientes para transformar 23 deputados e cinco senadores em réus de ações penais. O restante das investigações está na fase de inquérito. Um em cada seis parlamentares da atual legislatura está, então, sob investigação na mais alta corte do país.
Esta realidade constatada apela urgentemente por uma Reforma Política que proporcione instrumentos de reforma da democracia representativa, libertando-a das amarras do clientelismo e da corrupção eleitoral e consolidando a democracia participativa sobre bases éticas.
Reforma Política ainda por vir
Há quase 10 anos em hibernação no Congresso, acreditava-se que a reposição em pauta da reforma política reunia razoável convergência de vontades para aprová-la sem grandes atropelos. Os vários projetos sobre a matéria vêem sendo decantados desde 2003, o que se supunha expressar a média das tendências partidárias e de suas representações no Legislativo. Levadas à ordem do dia, contudo, desde o início da atual sessão legislativa, as alterações propostas quase em nada avançaram.
O reconhecimento pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) de que os mandatos pertencem aos partidos, foi novo complicador. O risco de que a interpretação do TSE pudesse "virar lei" pela falta de legislação sobre o tema "incentivou" a votação da matéria da fidelidade partidária. Para o deputado Rubens Otoni, relator do projeto da Reforma Política, a aprovação do projeto de lei complementar que tratou da fidelidade partidária "é a busca" de uma regra mais eficaz para "garantir" o mínimo de fidelidade.
Então, qual é o futuro da reforma política? As organizações sociais tinham expectativas de que a votação em lista fechada pudesse ser um primeiro passo na consolidação dos partidos. O Executivo, apesar de ter sinalizado seu apoio a uma reforma política profunda, com lista fechada para possibilitar o financiamento público exclusivo de campanha, acabou liberando sua base parlamentar para votar conforme sua inclinação ou seu bloco partidário.
A posição de J. A. Moroni, da direção da ABONG e do INESC, que atuou decididamente em favor de uma real reforma política, bem revela o estado da questão:
Diz ele: "Para nós, o que está sendo discutido no Congresso não é uma verdadeira reforma política. Ela trata de apenas alguns pontos de uma reforma eleitoral, mas não é a reforma política que nós entendemos e para a qual estamos trabalhando. Para nós, a reforma política é a reforma do próprio poder, de quem o exerce, em nome de quem se exerce, quais os mecanismos que se tem de controle do poder. O que está sendo pautado neste momento é uma reforma eleitoral de alguns pontos do processo eleitoral e da vida partidária, porque tudo diz respeito à questão das eleições".
Continua: "Outros pontos como o fortalecimento da democracia direta, o fortalecimento da democracia participativa, a democratização da comunicação e da informação e democratização do Judiciário, não estão sendo nem tocados". Falou também de dois grandes desafios: "O primeiro: criar realmente um movimento por uma reforma política ampla, democrática e participativa, com maior densidade social e política na sociedade. As pessoas estão, pouco a pouco, desconsiderando essa luta institucional. O outro grande desafio é criar força política para que o Congresso vá além da reforma eleitoral, o que só será conquistado com muita mobilização e pressão da sociedade".
Temos, então, três posições sobre a Reforma Política: a) os que ainda acreditam que o Congresso possa dar novos passos; b) os que só acreditam no processo em andamento com forte participação da sociedade; daí a Frente Parlamentar com a participação da sociedade civil; c) os que defendem uma Assembléia Constituinte. Esta última posição ganha espaço entre alguns partidos políticos e na própria OAB. Partindo do princípio de que o Congresso e os partidos estão desgastados, o professor Fábio Comparato apresentou ao Conselho Federal da OAB uma proposta de uma Assembléia Nacional Revisora - de representantes do povo, exclusivamente para esta finalidade. A OAB ainda não se pronunciou a respeito.
A questão do aborto
Entre os tantos projetos em tramitação sobre o aborto, há um que se sobressai porque vem sendo motivo de muitos conflitos. É o projeto recentemente desarquivado, que tem como autora a ex-deputada Jandira Feghali. Este projeto, após muitas tensões e muito barulho, tinha sido arquivado no final da legislatura anterior. É um projeto polêmico, com muitas implicações constitucionais (direito à vida), implicações jurídicas e éticas. A Comissão de Seguridade Social e Família, onde o projeto está alojado, está dividida num clima conflitivo. Estão sendo feitas audiências públicas numa tentativa de buscar consensos. Ainda faltam duas audiências públicas a serem realizadas até novembro. O próprio presidente da Comissão, deputado Jorge Tadeu Mudalen, assumiu a relatoria. Ele está recebendo muitas pressões em favor do aborto. Em entrevista recente, anunciou que só divulgará seu parecer após o Supremo Tribunal Federal definir sobre quando se inicia a vida humana.
Trabalho no comércio aos domingos
O Presidente Luiz Inácio Lula da Silva assinou, no dia 5/9, uma Medida Provisória (MP) para regulamentar o trabalho no comércio aos domingos. A MP, já em vigor, autoriza o trabalho aos domingos nas atividades do comércio em geral, observada a competência dos municípios de legislar sobre assuntos de interesse local. De acordo com ela, o repouso semanal remunerado deverá coincidir, pelo menos uma vez no período máximo de três semanas, com o domingo, respeitadas as demais normas de proteção ao trabalho e outras a serem estipuladas em negociação coletiva.
Tribunal Superior da Probidade Administrativa
O deputado Paulo Renato fez visitas às principais entidades da sociedade, apresentando uma PEC que propõe criar um Tribunal Superior da Probidade Administrativa: com onze membros, indicados pelo STF, sabatinados pelo Senado Federal e nomeados pelo Presidente da República. Este Tribunal terá competência para julgar crimes contra a Administração Pública e atos de improbidade administrativa praticados pelas altas autoridades. Visitou a CNBB e a OAB. Tanto a Comissão Brasileira de Justiça e Paz-CNBB como a Ordem dos Advogados do Brasil tiveram reações mais ou menos na mesma linha: o Supremo Tribunal Federal está preparado para julgar esses casos. O problema é que, infelizmente, a legislação não é aplicada.
Filhos de brasileiros que vivem no Exterior poderão ser registrados
A Câmara dos Deputados aprovou o projeto que permite o registro no exterior de filhos de brasileiros nascidos fora do País. Trata-se de uma emenda à Constituição estabelecendo que o registro possa ser obtido nas embaixadas e consulados. A Constituição, após a emenda de 1994, prevê a necessidade de a pessoa morar no Brasil para optar pela nacionalidade brasileira, o que obrigou muitos pais a voltarem ao País para pedirem o registro. Esta nova aprovação retira a obrigatoriedade dessa condição. Mais de 200 mil brasileiros nascidos no exterior devem ser beneficiados pelo projeto.
Sobre o ensino religioso
Está em tramitação no Congresso Nacional um projeto de lei do Deputado Lincoln Portela sobre o Ensino Religioso (ER). Altera o artigo 33 da LDB, no sentido de que o ER na educação básica seja ofertado mediante autorização dos pais ou representantes legais dos alunos, e que o desempenho dos estudantes nessa matéria não seja levado em conta para efeito da avaliação escolar regular. Desta forma o ER perderia o pouco que conquistou até o momento. Pensemos as conseqüências de uma Lei que, para o aluno ter ER, necessite da autorização dos pais! E mais, o ER seria dado sem ônus para os cofres públicos.
Todo o esforço da CNBB em 1997, para conseguir a aprovação da Lei nº 9475/97, que alterou o art. 33 da LDB para incluir novamente o encargo do pagamento do professor de ER, ficaria anulado. O deputado Odair Cunha está acompanhando com cuidado o Projeto na Comissão de Constituição e Justiça.
Notas:
(1) Não estão incluídas nesta corrente pessoas que participam do governo ou que ocupam posições privilegiadas no aparelho estatal (gestão de fundo de pensão, empresas estatais, autarquias, etc), cuja defesa do governo é óbvia.
(2) Ao redigir esta análise ainda não dispomos dos resultados finais.
(Contribuíram para esta análise Pe. Antonio Abreu SJ, Pe. Bernard Lestienne SJ, Daniel Seidel, Pe. José Ernanne Pinheiro e Pe. Thierry Linard. - Não é documento oficial da CNBB)
* Membro da equipe de ISER-Assessoria e da Coordenação Nacional do Movimento Fé & Política
Extraído de http://www.adital.com.br/site/noticia.asp?lang=PT&cod=29651 acesso em 22 set. 2007
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