Deu no Brasil de Fato:Dois acontecimentos esclarecedores vêm agitando a Bolívia nos últimos dias. Pois dão conta de descrever, como poucos analistas, o perfil da oligarquia do oriente boliviano. Um deles ocorre no chaco boliviano, em Alto Parapetí, no departamento de Santa Cruz. Desde o dia 4 de abril, grupos de criadores de gado impedem, à força, o início das vistorias, pelo governo, de 157 mil hectares de terras da região. O objetivo é verificar se as propriedades rurais cumprem a função econômica e social; no caso negativo, deverão ser distribuídas para camponeses guaranis. Nas fazendas da área, de acordo com o governo, a ONU e entidades de direitos humanos, entre outros, pelo menos mil famílias de guaranis são submetidas a regime de servidão. O outro acontecimento teve início em 19 de março, quando o governo do presidente Evo Morales emitiu um decreto proibindo provisoriamente a exportação de óleo de cozinha, com a finalidade de garantir o fornecimento à demanda interna e baixar o preço do produto. Os produtores do oriente, desde então, protestam veementemente, enquanto o Executivo lembra que a soja, matéria-prima do óleo de cozinha, recebe vultosos subsídios do Estado. Lógica econômica extrativista, anti-nacional e baseada na propriedade privada da terra, total subordinação ao mercado internacional, e a prática de um capitalismo colonial, onde a servidão nos latifúndios é permitida e tolerada. As características da elite de Santa Cruz saem à tona em exemplos concretos como os dois mencionados acima. As tensões na Bolívia se agravam com a aproximação da data da realização do referendo autonômico promovido pelas autoridades e o comitê cívico do departamento. A consulta, marcada para 4 de maio e considerada ilegal pelo governo e rechaçada pelos movimentos sociais, tratará da aprovação ou não do estatuto autonômico crucenho (de Santa Cruz), que propõe o controle departamental sobre, por exemplo, a terra e os recursos naturais. Tais fatos conjunturais encontraram uma sólida análise teórica com o lançamento do livro “Los Barones del Oriente. El Poder en Santa Cruz Ayer y Hoy” (Os Barões do Oriente. O Poder em Santa Cruz Ontem e Hoje), dos sociólogos Ximena Soruco Sologuren e Wilfredo Plata e do economista agrário Gustavo Medeiros (Faça o download aqui do livro lançado no dia 8 ) . Os autores partem do estudo da constituição histórica da oligarquia crucenha (de Santa Cruz) para analisar suas características atuais. A conclusão é curiosa: nada mudou. O perfil político, econômico e social dessa elite continua o mesmo de 130 anos atrás. A diferença é que, se antes o grande produto de exportação era a borracha, hoje é a soja. “Seu modelo econômico é o extrativo do século 19. E o racismo contra a população indígena é da mesma época. Que, se não for para exterminá-la, deve-se assimilá-la como mão-de-obra”, afirma Ximena, que, junto com Wilfredo, concedeu a entrevista abaixo para o Brasil de Fato.Para autores do livro “Los Barones del Oriente. El Poder en Santa Cruz Ayer y Hoy”, elite crucenha mantém seu poder através de uma lógica econômica anti-nacional e baseada no latifúndio e em um capitalismo colonial, que tolera o trabalho servil24/04/2008
Igor Ojeda
Correspondente do Brasil de Fato em La Paz (Bolívia)
Brasil de Fato – Por que o termo “barões do oriente”?
Ximena Soruco – É um termo que procura mostrar que a lógica de constituição desse grupo assentado em Santa Cruz é igual a dos barões do estanho. É de significado muito nacional. É um termo que a revolução de 1952 usa para questionar essa oligarquia mineradora que controlou o país por pelo menos 50 anos. Nossa hipótese é a de que os barões do oriente surgem na mesma época e com as mesmas características, mas, diferentemente aos do estanho, não são questionados pela revolução. Se no ocidente vem a reforma agrária que acaba com as haciendas [propriedade rural, comum na época colonial, cujo proprietário explorava as diversas formas de trabalho subordinado], no oriente, o processo se inverte: estas são constituídas a partir de 1952. Hoje, funcionam a hacienda e a empresa agrícola capitalista, e o latifúndio se complementa à hacienda. O modelo da soja, que é compartilhado com o Brasil, a expansão da fronteira agrícola, precisam do latifúndio para viver, precisa quem lhe dê terra. Não podemos pensar no latifúndio como um vício do passado, feudal. É produto dessa modernidade, desse capitalismo dependente.
Wilfredo Plata – A semelhança está no fato de que ambos os grupos surgem na mesma época, fim do século 19. Na mesma época em que se começa a explorar estanho no ocidente, tem início a produção da borracha no nordeste boliviano. Ambos estão ligados ao mercado internacional. O boom da borracha dura 30 anos, enquanto a mineração dura por quase todo o século 20.
Ximena – O boom da borracha se dá na Amazônia peruana, boliviana e brasileira. É época também da imigração européia, de imigrantes pobres, sobretudo para a Argentina, Uruguai... mas muitos se assentam também na Bolívia, chegando desde a Amazônia brasileira e peruana. E a saída principal da borracha era Belém do Pará. E de fato, a guerra do Acre, entre Brasil e Bolívia, se dá pela borracha, e o Tratado de Petrópolis diz que, em troca de sua assinatura, se construiria uma ferrovia Madeira-Mamoré, para tirar a borracha. É o mesmo que aconteceu com o Pacífico para tirar o estanho.
Wilfredo – Ou seja, podemos dizer que ambas as regiões exportam matéria-prima, para ser convertida em produto de valor agregado na Europa.
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Brasil de Fato – Então, com os agrocombustíveis, a oligarquia de Santa Cruz só tende a ganhar mais força.Wilfredo – Nós fizemos uma investigação e a conclusão nos diz que essa burguesia nacional, que foi criada pelo Estado nacional, tem uma visão local, regional. Está olhando o exterior, mas localmente. Não olha para o ocidente. É uma visão anti-nacional. Em outras palavras, se apropriam da região mais rica da Bolívia, em termos de recursos naturais.
Ximena – E sua lógica econômica condiciona sua lógica política. Não podem produzir um projeto político nacional. Esse é o limite. O que pode levar a um processo de separação política e administrativa da Bolívia. E a um suicídio coletivo.
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Brasil de Fato – E como se inserem, nesse contexto, os acontecimentos recentes no chaco boliviano, em Alto Parapetí? Wilfredo – Tem relação direta, tem a ver com a terra. E aí, existe um tema de longa data, o da servidão dos povos guaranis. Há uma espécie de manto que cobre isso, mas isso está demonstrado, há trabalhos a respeito. O que acontece é que existe essa relação de servidão, de famílias que estão cativas, que não recebem salários, que não tem horários estabelecidos.
Ximena – E aí que se mostra que é uma lógica econômica. Assim como vivem juntas a empresa agrícola e o latifúndio, podem conviver o salário ao camponês com a servidão. É uma lógica que nos mostra porque hoje as instituições crucenhas, como os comitês cívicos e o governo departamental, defendem os proprietários de terra de Alto Parapetí e do resto do chaco boliviano. Não é um capitalismo pleno, é um capitalismo colonial. Que pode usar escravidão, servidão e salário. Não há contradição nisso, porque não lhes interessa chegar a um capitalismo pleno, como queria a burguesia nacional em 1952, e sim extrair matéria-prima, excedente e lucro da melhor maneira possível. Como não existia um Estado forte, que defendesse os interesses de seus trabalhadores, no século XXI, ainda se mantém a servidão na Bolívia. E a elite crucenha defende esse modelo.
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Brasil de Fato – Então se pode dizer que esta elite é a mesma de 130 anos atrás.Ximena – A lógica é a mesma. Não é um problema de família. Há famílias que entram e que saem. As que empobrecem e as que enriquecem. Há, claro, sobrenomes que continuam, mas o que conta é a lógica. Seu modelo econômico é o extrativo do século 19. E o racismo contra a população indígena é da mesma época. Que, se não for para exterminá-la, deve-se assimilá-la como mão-de-obra.
Wilfredo – Além disso, é uma elite voltada para si mesmo, porque se concebe nos EUA, na Europa, uma elite branca, de língua espanhola, que no fundo despreza o indígena, a língua indígena. Especialmente, nos últimos tempos, eles até criaram sua própria etnia, a “nação camba” [os originários do oriente são chamados de camba]. Criaram um espaço geográfico, a meia-lua, e viram no seu horizonte como adversário o outro, o imigrante indígena colla [como são chamados os indígenas do ocidente], aymara e quéchua, basicamente. Eles são os inimigos, os que querem disputar seu espaço geográfico, seus recursos econômicos, e que, portanto, devem ser combatidos. Essa é a autonomia. A resposta política ao levantamento colla. E, para isso, criaram uma etnia sui generis.
Ximena – E isso é útil porque encobre as desigualdades no interior da região. Falar de um adversário político que se torna inimigo. O discurso regional, oriente contra ocidente, cambas contra collas, encobre a luta pelo excedente, pelas riquezas naturais, e quem se apropria desses recursos. É um discurso de moda, fácil, que encobre processos econômicos mais profundos e de mais longa duração.
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Brasil de Fato – O livro diz também que, para a manutenção da elite crucenha, o Estado boliviano deve cumprir seu papel de garantidor da propriedade privada da terra, de incentivador do modelo agroexportador e de repressor das revoltas populares. Então, quando esses “barões do oriente” se rebelam contra o governo Evo Morales, e impulsionam, por exemplo, o processo autonômico, isso quer dizer que eles temem que o governo busque fazer com que o Estado boliviano não cumpra mais esse papel? Ximena – Sim, porque desde 1952 até 2005, é a primeira vem que existe um Estado que não responde a seus interesses. Daí o medo. Porque, por não ser um processo plenamente capitalista, se necessita do Estado. A soja é exportada à CAN [Comunidade Andina de Nações], à Colômbia. Precisa de acordos internacionais, precisa de um respaldo. Esse modelo precisa de um Estado. O problema é, o que acontece se o governo de Evo Morales não lhes dá um espaço nesse Estado? Será que as coisas apontam para a criação de um Estado independente? A lógica mostra que sim. Se essa elite não conseguir que seus interesses sejam atendidos no Estado nacional boliviano, é possível que aposte na construção de um separado. Esperamos que não. A pergunta seria: como fazer essa elite se voltar para o mercado interno? Não é uma briga contra a exportação. Mas é que primeiro se deve pôr os interesses nacionais, e depois o mercado internacional. Mas isso não será uma coisa voluntária de uma elite. E sim produto dos movimentos sociais, que, no interior da região, podem questionar isso.
Wilfredo – Na história, a elite cruceña sempre teve cunho separatista. Isso sempre esteve latente. Desde a fundação de Santa Cruz, no século 16. Eles têm uma origem distinta do Alto Peru, porque vêm de La Plata. Então, o separatismo fomentado por grupos radicais está presente na história. E isso vem sendo usado para se negociar com o Estado. Ou seja, em momentos de conflito como o atual, sempre se abre a possibilidade do separatismo, “finalmente poderemos ser livres”, “ser independentes”.
Ximena – O problema é que eles não fazem sequer um bom cálculo econômico. Hoje, eles se vinculam com Brasil, Argentina e Peru, e não La Paz. A pergunta econômica é: a saída para o Pacífico, a China, Índia, é pelo Chile, e passa pelo ocidente boliviano. Então, até que ponto é viável um Estado que não tenha uma saída garantida ao Pacífico? Eu acredito que não seja. Não é suficiente a saída ao Atlântico. Então, a ação de Santa Cruz pode ser mais uma negociação para obter um espaço de representação dentro do Estado via um Estado federal, autônomo, mas quase independente, porque o estatuto questiona o aspecto fiscal, o controle de terras, âmbitos chaves que sempre foram manejados pelo Estado central.
Wilfredo – O estatuto tem um epicentro. É a terra. A terra e os recursos naturais. Eles querem ter sua própria lei departamental. Que o governador assine os títulos, distribua as terras... aí não tem reforma agrária. Simplesmente é validar o que está. Nada a ver com o Estado boliviano. Ou seja, se eles propuserem isso, não teremos mais um Estado unitário, boliviano.
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Brasil de Fato – No livro é dito também que, diferentemente dos barões do estanho, os do oriente não se apropriaram do Estado boliviano. Mas, mantêm uma influência muito grande sobre ele, não é mesmo? Como era essa relação da elite do oriente com o poder central? Ximena – A diferença é que uma burguesia clássica se constrói a partir de um processo econômico e toma o Estado, como na Revolução Francesa. Nos casos dos barões do estanho, é semelhante. Essa burguesia surge com o boom do estanho, processo de acumulação originária, e, na Revolução Federal de 1899, tomam o Estado. Chegam a mudar a sede de governo de Sucre a La Paz. Já a burguesia do oriente tem como momento dourado 1952, com as dotações de terras pelo governo e a agroindústria. Mas não tomam o Estado. É este, produto de um movimento social da Revolução, que investe capital para fortalecer essa burguesia constituída no oriente. Um Estado minerador constrói uma burguesia agroindustrial. Esta participa no Estado, mas não é ele. E tampouco têm a capacidade de se apropriarem dele. Não existe uma liderança ou um projeto político nacionais. Mas o controle sobre a região lhes permite negociar com o Estado. Brigam desde os anos 1950, quando surgiu o comitê cívico. Desde então, há uma acumulação de demandas. Para eles, a culpa por todos os problemas de Santa Cruz é do Estado central.
Wilfredo – Mas podemos enunciar algumas hipóteses. Por que não possuem uma visão nacional? Pode ser devido ao repúdio ao indígena. O rechaço ao indígena, ao outro, que deve ser excluído. Os limites geográficos do que seria a nação camba exclui toda a região andina. Onde estão os índios. O resto dos indígenas pode ser cooptável, assimilável.
Ximena – Os barões do estanho conseguem um projeto político nacional porque, até 1952, os indígenas estavam excluídos das votações. Não eram atores políticos, só mão-de-obra. Pongos [como eram chamados os indígenas que trabalhavam em regime de servidão]. Hoje, ao contrário, para se criar um projeto nacional, esta elite teria que reconhecer a cidadania da população indígena majoritária, e não estão dispostos a isso.
Brasil de Fato – E como se deu o processo de transformação da direita boliviana de um caráter político-partidário a um regional?
Ximena – Esta elite se afinca no tema cívico, porque está incrustado na região. Por isso que os processos regionais na Bolívia estão hoje mais vinculados a comitês cívicos do que a partidos políticos. Porque a característica de um partido político é ter que lutar num terreno público nacional, e o comitê cívico não. Além disso, os comitês são estruturas não democráticas. E não se submetem ao voto. Se elegem entre eles e ficam ali.
Wilfredo – São clãs. A pele, o apelido, a família. São estruturas corporativas, por interesse, não têm um caráter classista, que defendam ideais, uma visão de país. São corporações, fundamentalmente econômicas.
Ximena – Outro aspecto é que, durante as ditaduras na Bolívia, sobretudo a de Banzer [Hugo Banzer, ditador entre 1971 e 1978 e presidente constitucional de 1997 a 2001], a única organização da sociedade civil que podia agir eram os comitês cívicos. Nem partidos, nem sindicatos, nenhuma outra instituição. Os anos 1970 conformam um momento de fortalecimento dos comitês cívicos. E nos anos 1980 podem planejar todo um projeto cultural, identitário.
Wilfredo – A política hoje na Bolívia se etnizou, foi posta em territórios. De um lado, os indígenas, de outro, o resto, as elites. Se partiu em dois. O tema indígena se levou ao extremo no ocidente, se etnizou aqui. E no oriente também, com o tema das autonomias. A região, o crucenho. Não há um discurso de esquerda etc. A Bolívia está partida por territórios étnicos.
Leia na íntegra em http://www.brasildefato.com.br/v01/agencia/entrevistas/a-heranca-racista-e-oligarca-da-elite-de-santa-cruz
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