Deu na Agência Carta Maior:A questão que dominou o cenário político na Argentina, a partir de 11 de março deste ano, foi deflagrada pela decisão do governo de atrelar a cobrança de tributos sobre a exportação de produtos primários (“retenciones”) à evolução dos preços desses produtos no mercado internacional. Com essa medida, esses tributos, que eram da ordem de 33%, passaram para algo em torno de 42-43%. A adoção de um sistema móvel para a cobrança de tributos sobre produtos agrícolas, sem elaboração industrial, se dá em um momento de alta sustentada do preço desses produtos no mercado internacional, sobretudo no caso da soja. É importante ter isso em mente para entender o significado da decisão de relacionar a cobrança de tributos à situação do preço dos produtos agrícolas em nível mundial.No centro do conflito entre governo e proprietários rurais está a questão da redistribuição de renda. Do ponto de vista político, a direita argentina, que estava desprovida de agenda, encontra no discurso da “defesa do campo” uma possibilidade de se rearticular em nível nacional.Flávio Koutzii*
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A redistribuição de renda. Este é o ponto.
A redistribuição de renda. Este é o ponto.
O que foi o “milagre argentino”? Foi a capacidade do país se recuperar, em um curto espaço de tempo, da tragédia econômica de responsabilidade da ditadura militar e da década da traição menemista, quando houve a aplicação integral da receita neoliberal. Foi a década da privatização dos aeroportos, dos sistemas aduaneiros, da Aerolíneas, da YPF, dos Correios, da telefonia, dos trens e do metrô. Ao contrário do Brasil, onde houve certa resistência e não conseguiram privatizar tudo, na Argentina a obra neoliberal foi completa. O que nenhum analista honesto pode negar é que o governo Kirchner, além dos enfrentamentos que teve coragem de ter nos terrenos político, institucional e especialmente na área de direitos humanos, conseguiu recuperar a economia argentina. Mais do que isso conseguiu levá-la a resultados positivos, sistemáticos e contínuos, nos últimos cinco anos.
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O retorno do mito do “campo”
O retorno do mito do “campo”
Aqui é importante refletir sobre uma questão que não é menor. Do ponto de vista de uma esquerda mais exigente, o objetivo da luta política de esquerda não é exatamente só uma melhor distribuição de renda. Este seria um horizonte muito modesto. É e não é. No caso da Argentina, se vê como, em torno da oposição a um aumento de tributos, se constrói um pólo político que consegue se cobrir com o manto “nobre” da afirmação: “de que é um movimento do campo como uma totalidade”. A luta seria entre o “campo” e o governo. E na forma pela qual o conflito político se cristaliza desde o primeiro momento, na polarização Campo x Governo.
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Assim, na disputa político-ideológica, os interesses desse setor (que sempre são de maximizar seus lucros) ganham ar de nobreza a partir da evocação de uma espécie de raiz histórica e de uma mitologia que já não corresponde aos fatos. Essa tática ganhou força também em função de um erro de abordagem cometido pelo governo. Esse erro ocorreu, primeiro, em não construir socialmente sua decisão, e segundo, no primeiro discurso feito pela presidente Cristina Kirchner sobre o tema, no dia 25 de março, 14 dias depois do início do conflito.[ . . . ]
O erro do governo
O erro do governo
Neste cenário, inicia-se uma tentativa de desqualificação da figura da presidente Cristina Kirchner, similar ao que a elite brasileira tentou (e ainda tenta) fazer com Lula, numa espécie de diminuição permanente da estatura do personagem. Esse processo é alimentado com uma série de preconceitos e reservas em relação a ela. Pressionada por tal cenário, a presidente faz um discurso à nação no dia 25 de março. Neste discurso, marcado por um tom de confronto, ela não distingue, na sua fala, o pequeno e o médio proprietários dos grandes proprietários. Isso dá espaço para que seus adversários reforcem o discurso da “soberba” como marca de Cristina Kirchner. Ao não falar sobre as diferenças reais de situação social dentro da própria produção do campo, ela ajuda a unir todos os produtores, tanto os pequenos quanto os grandes. Um erro indiscutível, que ela procura corrigir no seu segundo discurso à nação.
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O cacerolaço e a reação do governo
O cacerolaço e a reação do governo
No dia 26 de março, as centrais agrárias anunciam que seria realizado um cacerolaço (panelaço) às 20 horas daquele mesmo dia como forma de protesto e de solidariedade com o campo. Foi impressionante. Centenas de pessoas caminhando pela avenida Santa Fé em direção à Praça de Maio. Havia muitos jovens e o perfil dos manifestantes era de classe média alta. Os bairros do norte de Buenos Aires baixavam para a praça em busca de seu encontro com a história.
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Cristina Kirchner exige a liberação das estradas para iniciar qualquer negociação. Alguns dias depois, vem a resposta mais expressiva em favor do governo: uma manifestação de apoio na Praça de Maio que reúne cerca de 80 mil pessoas, a maioria vinda dos bairros populares de Buenos Aires. O governo mostra força, os líderes do movimento de protesto recuam e anunciam a suspensão dos bloqueios nas estradas para iniciar negociações.A agenda encontrada
Do ponto de vista político, a direita argentina, que estava desprovida de agenda, encontra no discurso da “defesa do campo” uma possibilidade de se rearticular em nível nacional. Os próximos embates definirão qual o real poder dessa rearticulação que se opõe aos planos do governo de instituir novas políticas capazes de alterar o quadro de distribuição de renda no país. O assunto não terminou.
* Flávio Koutzii é sociólogo
Leia na íntegra em http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=14915
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