O verdadeiro patriotismo é o que concilia a pátria com a humanidade.
Joaquim Nabuco, 1849-1910

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sexta-feira, 4 de abril de 2008

Análise de Conjuntura abr. 2008

Deu no Instituto Humanitas Unisinos:
Recebemos e publicamos, na íntegra, a análise de conjuntura que foi apresentada no dia 02-04-2008, na Assembléia Geral da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil - CNBB, por Pedro A. Ribeiro de Oliveira, professor na PUC-Minas e no ISER-Assessoria.
Eis o texto.

Apresentação

No momento em que a Assembléia Geral da CNBB define as novas Diretrizes Gerais da Ação Evangelizadora da Igreja no Brasil, esta análise de conjuntura quer trazer uma visão dos desafios trazidos pela realidade atual. Posto que a evangelização se dá no contexto da cultura (modo de cada grupo humano pensar, falar, produzir, consumir, reproduzir-se, expressar-se artisticamente, relacionar-se com o sagrado, enfim, um modo de vida partilhado de uma geração a outra) e ela é dinâmica, trata-se de decifrar as linhas de força hoje atuantes em nossa cultura.

O problema metodológico – nunca satisfatoriamente resolvido – reside no fio condutor da análise: sendo a cultura uma totalidade complexa, ela é melhor entendida a partir dos seus elementos materiais (as relações sociais que moldam a produção, a reprodução, o consumo e o poder) ou a partir dos seus elementos ideais (pensamento, valores e expressões artísticas e religiosas que dão sentido aos comportamentos)? Se é evidente que não se pode reduzir a cultura a um de seus hemisférios, não há consenso sobre qual deles tem o peso determinante. Nossa opção metodológica pelos elementos materiais da cultura como ponto de partida dá realce às desigualdades no ter, no poder e no saber, trazendo à luz o sofrimento dos perdedores no jogo do mercado. Ao colocar como ponto de chegada os valores que impulsionam o agir, ela assinala as tendências em curso no mundo e interpela a Igreja quanto à eficácia de sua ação evangelizadora.

Já foi dito que, mais que uma época de mudanças, vivemos uma mudança de época: após o longo domínio da civilização ocidental, estamos passando a uma época planetária, fruto da globalização cultural e econômica. Essa nova época, que agora se esboça em meio a graves crises – ecológica, econômica e social – poderá ser um tempo de divisões, com a exclusão dos povos e grupos empobrecidos, sem voz no concerto mundial, mas pode também ser o início de uma nova harmonia mundial, onde as diferenças sejam valorizadas num sistema multipolar, no qual nenhum povo exerça sozinho o poder sobre os demais e onde sejam considerados os direitos da Terra e das gerações vindouras.

Vivemos então um período contraditório, no qual várias tendências se entrecruzam. Crescimento econômico nos últimos cinco anos e concentração da riqueza em poucas mãos; lucratividade do capital financeiro e desvalorização do trabalho; megaurbanização e campo transformado em agroindústria; desenvolvimento das comunicações e desinformação de grandes setores sociais; fortalecimento do poder econômico e enfraquecimento do poder político; emergência da consciência ecológica e devastação do Planeta (Amazônia!); movimentos sociais que proclamam que “outro mundo é possível” e desalento geral com a política. Este é um ambiente cultural propício ao desenvolvimento de atitudes individualistas que se manifestam também no campo religioso.

Esta análise não pretende abordar todos esses problemas, mas quer dar uma visão global da realidade brasileira situando-a no continente americano e no mundo atual, a partir de três focos: a crise do sistema financeiro mundial, o quadro político mundial e latino-americano, e o papel que os movimentos sociais nele desempenham. Ela termina, como de hábito, com um breve apanhado do Congresso Nacional.

I . Sistema financeiro mundial abalado – e o Brasil?

Situação do dólar

Como é possível que a inadimplência em empréstimos imobiliários de segunda categoria nos Estados Unidos provoque uma crise global? Para entendê-la, é preciso ter em conta que a globalização é fundamentalmente financeira e que o sistema financeiro se interliga num grau mais alto do que o sistema produtivo (de bens ou de outros serviços), pois o crédito (no sentido estrito de confiança) é seu ingrediente mais importante.

Em 1944, em Bretton Woods, foi proposta uma moeda internacional, mas os EUA se opuseram porque era o dólar moeda internacional. Foi estabelecido que o dólar estaria lastreado pelas reservas americanas de ouro e o Tesouro americano se comprometia a resgatar com o peso em ouro cada dólar apresentado. Em 1971, porém, o governo dos EUA desvinculou unilateralmente o dólar do padrão ouro, alegando que o verdadeiro lastro do dólar era a confiança do mundo na economia americana. Isso lhe possibilitou emitir moeda para atender as exigências de consumo da sua população e seus gastos militares. E até hoje a maior parte dos depósitos bancários, do comércio e das transações financeiras internacionais, se fazem em dólar.

Enquanto o dólar foi aceito e buscado por todo o mundo porque o mundo todo o aceitava e buscava, a política econômica norte-americana pôde satisfazer a “sociedade de consumo” mesmo aumentando o déficit externo e a dívida pública (que atualmente se aproxima dos US$ 4 trilhões). Mas se a confiança no dólar diminui, entra em ação o círculo vicioso, pois a queda do dólar reduz a confiança. Fora dos Estados Unidos, quem detém poupanças em dólar começa a desfazer-se delas. Essa estratégia de fuga em busca de papéis mais seguros, pode elevar os preços das matérias-primas, pois não há ouro bastante para servir como reserva de valor. O petróleo, por exemplo, que amanhã pode ser revendido (à China ou a outros) antes mesmo de ter saído do chão.

A economia brasileira e o vendaval financeiro

A política econômica do atual governo tem três prioridades macro-econômicas: a estabilidade (dos preços internos e das regras estabelecidas), o crescimento econômico e a redução da miséria (sendo este um objetivo extrínseco, dependente da ação corretiva do governo e não da política macro-econômica).

Comparados os seis anos do atual governo com os anteriores, vê-se que essas prioridades estão se realizando: a inflação está sob controle (às custas de juros nas alturas), o Brasil voltou a crescer de forma continuada (média de 4,5% de 2004 a 2007) e sem perda de impulso, e os programas de combate à pobreza e à miséria reduziram a percentagem de pessoas abaixo da linha estatística de miséria e aumentaram os setores médio-baixos (1). Esse êxito tem sua explicação no excepcional crescimento econômico mundial puxado pela China e sustentado pela livre exploração dos recursos naturais da Amazônia e do Cerrado, hoje usados como fontes de produtos primários de exportação. Além disso, a capacidade produtiva brasileira tem crescido mais rapidamente do que o consumo puxado pelo mercado interno. O que está em questão é o atual modelo produtivista, que requer muitos investimentos na geração de energia elétrica. Se desejamos preservar o meio-ambiente para as gerações vindouras, temos que rever o modelo desenvolvimentista do Plano de Aceleração do Crescimento (PAC).

Diferentemente de outros surtos de crescimento, cujos desequilíbrios e contradições internas os levaram à exaustão, o atual só pode ser barrado “de fora para dentro”, seja por pela crise internacional, seja pela obsessão monetarista com a estabilidade (que eleva os juros e premia quem só empresta). Hoje a economia nacional é menos vulnerável, por ter a política externa diversificado nossos parceiros econômicos, ampliado o leque de trocas e reduzido o papel dos EUA. Persiste, porém, o “calcanhar de aquiles” da dívida pública: deixamos de dever em dólar (que está derretendo) para dever e pagar em real (que se valoriza) (2).

Diante desse quadro de crise financeira, é bom lembrar que ao longo de toda nossa história, crise externa significou oportunidade para o Brasil avançar internamente, sempre de forma imprevista e original(3). Hoje, nosso “setor externo” é mais diversificado e tudo depende de como a provável recessão norte-americana afetará a China e outros compradores. Embora nosso crescimento esteja assentado em fatores internos, a propagação do clima de instabilidade financeira pode levar os investidores externos a retirar seus recursos do Brasil (4) para liquidar suas contas, deseqilibrando assim as contas externas.

II . O cenário político

A palavra crise hoje tão utilizada corresponde a uma realidade. Fala-se de crise global, sistêmica, ou de civilização; é uma crise de muitas faces, cujo emblema é a crise ambiental cada dia mais grave. Entre elas, destaca-se a crise das instituições de poder. A absolutização do mercado leva ao esvaziamento da democracia e das instituições reguladoras (Estado, educação, seguridade social, partidos políticos, igrejas, família, polícia), prejudicando os processos (eleições, alocação do trabalho, comunicações, migrações) que deveriam assegurar o bom funcionamento da sociedade.

Quando as relações se desfazem e se desarticulam, os valores tradicionais perdem o seu sentido. Valores de solidariedade, de co-responsabilidade, de ajuda e confiança são abafados pelos valores da concorrência, da competição e do individualismo; do materialismo também. As relações sociais e humanas são mediadas pelo dinheiro. As pessoas valem pela sua conta bancária. A democracia – arte de viver em sociedade participadamente – está sendo atacada e ameaçada de destruição pela lógica do capital, do lucro, do enriquecimento. As empresas mundiais (bancos, mineradoras, armamentistas, farmacêuticas, biogenéticas, etc.) ditam suas regras aos Estados e governos. O mercado deu um golpe contra a política e tomou as rédeas da vida social.

Num mundo marcado pela globalização, os problemas locais ganham alcance mundial e necessitam de instituições e mecanismos de governança também mundiais. Mas enquanto os países emergentes reivindicam uma distribuição mais eqüitativa dos frutos do crescimento, as instituições que estabelecem as regras da economia mundial – em particular o FMI e o Banco Mundial - asseguram vantagens aos países mais ricos. A ONU – a mais multilateral das instituições mundiais – sofre sob o unilateralismo dos EUA.

A ausência de governança democrática mundial abre o caminho para a violência, a insegurança, os conflitos e as guerras. Esperava-se que o término da guerra fria desse início a um período de paz e de desenvolvimento, mas multiplicam-se as disputas e guerras por fontes de energia e matérias primas. A repressão de Israel sobre os palestinos está no centro do confronto entre o Ocidente e os povos árabes e populações muçulmanas.

Neste contexto de crise das instituições da vida social é a sociedade civil mesma que supre as falhas da democracia representativa e aponta alternativas de maior participação. Multiplicam-se os fóruns, movimentos, redes, campanhas, plataformas, círculos, etc. criando novas formas de expressão e mobilização. Muitas vezes, os movimentos sociais e populares estão na dianteira dos partidos políticos para expressar as necessidades e aspirações dos cidadãos e para encarar os desafios do futuro. Na medida em que contestam eficazmente o modelo hegemônico em crise e oferecem propostas novas e críveis, os movimentos sociais se tornam alvo de repressão e violência. Com frequência, são demonizados e acusados de serem eles próprios a causa dos males que denunciam.

O desafio é desenvolver e consolidar a articulação dos movimentos e organizações que brotam em vários campos da vida social. As igrejas e tradições religiosas podem desempenhar um importante papel na construção de alternativas fundadas sobre valores de paz, justiça, solidariedade e cuidado ecológico.

A América Latina: Dependência e Movimentos sociais

Nas duas últimas décadas, os movimentos sociais deram nova configuração ao cenário político da região. O fim das ditaduras militares inaugurou um período de restauração democrática na região, mas o povo ficou frustrado com seus parcos resultados, pois a defesa dos direitos humanos não resultou em melhor distribuição do poder e da riqueza. A política, os partidos e o poder judiciário perderam credibilidade diante da corrupção e do corporativismo que favorecem a impunidade.

Desde o fim da década de 1980 o ideário neoliberal do “estado mínimo” bloqueia o desenvolvimento prometendo a utopia do mercado capaz de satisfazer todos os desejos (5). Nesse contexto, os sindicatos perdem a função de defensores dos interesses populares e criam-se outras formas de movimentos com forte consciência política, capazes de conciliar a defesa de objetivos sociais específicos (indígenas, sem-terra, Direitos Humanos, dívida externa, negros, desempregados, mulheres, jovens...) com os interesses coletivos gerais, de modo a formar-se um amplo arco de alianças populares. Nessa diversidade de organizações e de lutas, integram-se dimensões de identidade étnica, busca da paz e combate à militarização e aos armamentos, a proteção do planeta, a defesa de tendências sexuais, de valores éticos e espirituais. As organizações são fluidas, horizontais, dinâmicas, em rede. Demandas pontuais, às vezes locais, substituem os grandes projetos. E essas articulações bem vivas multiplicam-se rapidamente pelo acesso à internet.

Esses novos movimentos sociais projetam-se sobre um cenário antigo: a América Latina e Caribe como espaço aberto à exploração dos recursos naturais. Nesta hora em que a maior biodiversidade do planeta e a rica sócio-diversidade representada por seus povos e culturas ganham evidência, é preciso reconhecer as condições desiguais dessas culturas face à cultura do mercado, hoje globalizada. Esta segue uma dinâmica de concentração do poder, da riqueza, da informação e dos recursos naturais, e exclui sem piedade quem é insuficientemente capacitado e adaptado. Aí irrompem os novos atores sociais que promovem outro modelo de desenvolvimento, visando não o produtivismo mas a produção, as trocas e o consumo solidários, conforme o princípio da subsidiariedade e regidos pelo respeito aos direitos humanos e aos direitos da Terra. Destacam-se, nesse quadro, os povos indígenas dos países andinos, que não só reivindicam o reconhecimento de seus direitos individuais e coletivos, mas propõem uma nova regulação da economia, das finanças e do comércio mundial, em substituição à atual globalização do mercado.

As eleições nesta última década assinalam a emergência de novas maiorias políticas que defendem a integração regional e uma agenda de desenvolvimento autônomo. A despeito dos habituais mecanismos de subordinação das massas, como o clientelismo e a manipulação da mídia, essas eleições expressam a rejeição popular aos “donos do poder”. É o caso de Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Equador, Nicarágua, Uruguai e Venezuela, que tomam distância das diretrizes norte-americanas e criam alternativas regionais(6). Não sem enfrentamentos com as elites, está em curso a recuperação do controle das riquezas minerais, a desprivatização das águas, um novo papel do Estado a serviço do desenvolvimento social, reconfigurando as instituições políticas para garantir os direitos dos setores tradicionalmente desconsiderados pelos “donos do poder”. Estes não hesitam em desrespeitar as instituições democráticas e em manipular as informações na mídia para assegurarem seus privilégios.

Neste embate entre os novos movimentos sociais e a “elite do poder” há vitórias e derrotas em ambos os lados. Os Tratados de Livre-Comércio assinados por países da América Central e do Sul são uma vitória das forças neoliberais, tanto quanto a rejeição da ALCA foi uma vitória das forças de esquerda (7). Diante do desmonte de suas estratégias geopolíticas para a América Latina, o governo dos EUA introduziu um novo ingrediente nesses tratados: a parceria norte-americana para a segurança e a prosperidade, que introduz a noção de segurança nos processos econômicos e comerciais. Assim, a defesa da ordem democrática (leia-se a liberdade do mercado) iria de par com o direito de intervenção em caso de alteração desta ordem. Não por acaso, a segurança pública no continente tem sido militarizada. O caso mais evidente é o da Colômbia, onde conselheiros militares norte-americanos, operadores militares privados e companhias de segurança privadas envolvem-se em operações militares sem a anuência do Congresso dos Estados Unidos. A política do uso da força contra os inimigos tem sido estimulada desde Washington(8), daí resultando o bombardeio e a invasão de território equatoriano pela Colômbia, a ação do exército mexicano contra o tráfico de drogas, ou a intervenção militar em favelas cariocas. Aliás, até hoje não foram unificadas as polícias civil e militar no Brasil, e permanece em vigor o modelo repressor do regime militar dito “de segurança nacional”.

Talvez os processos mais inovadores estejam no Equador e na Bolívia, onde os movimentos dos povos indígenas são fortes, provocando a reação de quem nunca reconheceu a cidadania indígena. Na Bolívia, a oposição vem de governadores de regiões petrolíferas e de agronegócio, que acusam o presidente de querer instalar um governo totalitário. No Equador, a Assembléia constituinte é a oportunidade histórica para transformar as estruturas do país e recuperar sua soberania econômica. Essa “revolução cidadã”, visceralmente odiada por uma poderosa mídia, gerou grande esperança no seio da população, embora em seu caminho se escondam muitas serpentes.

O desafio político para os movimentos sociais da América Latina e Caribe consiste não só em libertar-se da dominação econômica e política de uma oligarquia subordinada aos centros financeiros do capitalismo, mas também evitar um populismo que muda os governantes sem mudar as estruturas oligárquicas do poder. Cuba, Bolívia, Equador e Venezuela optaram pelo enfrentamento contra os “donos do poder”, assumindo o risco da radicalização. Chile, Argentina, Uruguai e Brasil escolheram o caminho da negociação com as forças do mercado mundial e as oligarquias locais. Isto significa um custo econômico, social e político que as classes subalternas continuam a pagar em favor das classes privilegiadas. Invocar o risco de bi-polarização das sociedades latino-americanas é próprio do discurso das classes hegemônicas. Na V Conferência do Episcopado da América Latina e Caribe, em Aparecida, os bispos mostraram-se atentos a esses processos. Resta saber em que medida os fiéis leigos e leigas conseguirão colocar-se à altura de suas responsabilidades nas diversas estruturas de ordem temporal.

III . Atualidade dos Movimentos Sociais no Brasil

Comparado ao dinamismo social e político de outros países latino-americanos, o Brasil vive um tempo de pouca mobilização popular. A novidade maior vem dos povos indígenas que estão se afirmando como conjunto de povos e formulando propostas políticas pluri-étnicas onde os brancos e europeus não são mais os únicos protagonistas. Convém lembrar que neste momento está em debate a legislação sobre a mineração em terras indígenas e que os interesses em jogo são enormes. O embate não se dá mais apenas com os tradicionais exploradores das riquezas amazônicas (grileiros, madeireiros, garimpeiros), mas há sinais de que eles se incluem numa estratégia mais geral de criminalizar os movimentos sociais que se colocam contra os interesses das grandes corporações (como Vale, Syngenta, Monsanto, Aracruz Celulose).

Situação dos povos indígenas

A identificação e demarcação das terras indígenas continuam lentas. De um total de 850 terras indígenas reconhecidas, 126 aguardam identificação e 225 terras ainda não foram objeto de providências, ficando expostas a invasões e violências de todo tipo. A ênfase do governo federal na execução do PAC, sem o necessário cuidado com as questões ambientais e com as populações tradicionais, traz o risco de intensificação de invasões comandadas até mesmo por empresas do agronegócio e de mineração. A ânsia de crescimento econômico no modelo produtivista favorece a destruição do patrimônio dos povos indígenas e geralmente ameaça a saúde, o equilíbrio psíquico e social, a cultura e a harmonia das comunidades, que perdem a esperança de um futuro melhor.

Mais grave ainda é a situação dos povos sem contato com organismos da sociedade nacional. São grupos pequenos e frágeis, sem defesa imunológica e cultural, que perambulam pelos rios e matas, evitando o contato com o mundo branco. O CIMI tem recebido denúncias de organização de grupos de extermínio com o objetivo de “limpar a área” eliminando todos os membros desses povos, para nãoe correr o risco de vir a ser reconhecida como de ocupação tradicional.(9)

Duas outras situações reclamam urgente intervenção do governo e da sociedade organizada. A primeira, é a violência sofrida pelo povo Guarani Kaiová, no Mato Grosso do Sul, cujo território não tem espaço suficiente para sustentar toda sua população. Nos dois últimos anos ocorreram 59 suicídios, inclusive de crianças e adolescentes. Além disso, suas lideranças são vítimas de perseguição, como a rezadeira Xuretê Lopes, de 72 anos, assassinada por pistoleiros. Se medidas radicais não forem tomadas, o povo Guarani Kaiová corre o risco de ser exterminado sem defesa.

A segunda situação é a da terra indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima, homologada em 2005, quando um grande número de invasores foi realocado pelo Incra. Um grupo de cinco grandes arrozeiros, contudo, não acata qualquer medida judicial nem aceita prazo para sair da terra indígena por eles ocupada. Eles têm sido responsabilizados por vários crimes, como seqüestro (de religiosos, funcionários públicos e lideranças indígenas), ameaça de morte a lideranças indígenas, ataque armado a comunidades indígenas, destruição de centros de ensino da Missão Consolata e crimes ambientais por uso de agrotóxicos. Respaldados por políticos e certos de sua impunidade, desafiam os poderes executivo e judiciário, e afirmam que vão ampliar a área invadida.

Foi agora iniciada uma operação da Polícia Federal, a Upatakon 3, para retirar definitivamente esses invasores da terra indígena Raposa Serra do Sol. Houve choques entre a polícia e empregados dos arrozeiros que bloquearam uma estrada, tendo sido detido um de seus líderes, mas liberado após pagar fiança. É importante acompanhar os desdobramentos desta operação, porque os arrozeiros têm fortes aliados nos três poderes da República, no estado de Roraima e na mídia local e nacional.

Outros movimentos sociais

Os Movimentos Sociais no Brasil começam agora a ser propositivos, ou seja, além de defenderem suas causas específicas, apresentam projetos para o futuro da sociedade brasileira no seu conjunto. Convém notar que neste aspecto os movimentos do campo (MST, MAB e de povos indígenas) têm conseguido avançar mais do que os movimentos urbanos (principalmente os sindicatos que nos anos 1970 e 80 estiveram na linha de frente dos movimentos sociais). Um passo importante foi a realização, em outubro de 2005, da Assembléia Popular em parceria com a 4ª. Semana Social Brasileira, quando foi delineado o primeiro esboço desse projeto para a sociedade brasileira.

Esse passo em direção a uma articulação propositiva dos Movimentos Sociais, contudo, não tem sido acompanhado de um avanço equivalente nas bases. Ora, sua força reside na sua capilaridade social, isto é, sua capacidade de penetração e de mobilização desde as bases populares. Para isso eles sempre contaram com a preciosa colaboração das pastorais sociais e das CEBs normalmente atuantes nos setores sociais excluídos das benesses do mercado, tanto nas periferias urbanas quanto nas áreas de agricultura familiar e de posseiros. Hoje, porém, essa colaboração das bases eclesiais está sofrendo certa retração, como se o campo dos Movimentos Sociais não fosse área de atuação própria a grupos da Igreja. Esse relativo distanciamento entre Movimentos Sociais, de um lado, e as pastorais sociais e CEBs, de outro, diminui tanto a capilaridade social dos Movimentos quanto a influência social e política da Igreja na elaboração de um projeto para a sociedade brasileira a partir das bases populares.

Duas outras questões merecem destaque na atual conjuntura dos Movimentos Sociais. A primeira é a paralisação dos processos de reconhecimento de áreas quilombolas pelo INCRA, para não prejudicar o PAC. A segunda é o avanço da consciência ecológica nos setores populares. O noticiário sobre o aquecimento global começa a penetrar nas camadas populares e os Movimentos Sociais lhe dão o colorido político, que a mídia sistematicamente omite. O tema da ecologia vem sendo politicamente assumido pelos Movimentos Sociais na medida em que eles percebem que as soluções apontadas pela tecnologia só beneficiam quem pode pagar por elas, e buscam soluções tecnológicas a partir dos interesses dos pobres. Nesse sentido, o debate sobre o modelo produtivista de desenvolvimento e o modelo ecológico-social, abordado na análise de conjuntura de fevereiro passado, é um dos temas do momento nos Movimentos Sociais. As pastorais sociais e as CEBs são hoje chamadas a dele participar mais ativamente, para que a Igreja não fique alheia ao que está sendo tratado nos setores populares.

Cabe também apontar um debate que hoje permeia os Movimentos Sociais: quais propostas teriam hoje maior capacidade de mobilização massiva? As questões urbanas – transporte público, segurança, moradia e saúde – parecem ser as mais capazes de retomar o impulso nas áreas urbanas. Por outro lado, a Reforma Agrária está praticamente paralisada, e sem ela não há verdadeiro desenvolvimento nacional. Qual a prioridade? Talvez tenhamos que escutar melhor o clamor do nosso povo por uma vida digna e pacífica.

Enfim, é preciso ter presente que este é um ano eleitoral e isso representa uma grande ocasião para a Igreja realizar seu papel de educadora para o bem-comum. A experiência mostra que sua influência política reside menos em sua capacidade de eleger candidatos de seu agrado, e mais em criar um clima favorável à ética na e da política. É quando ela assume o papel de formação das consciências, seja assumindo a campanha contra a corrupção eleitoral, seja difundido folhetos ou cartilhas que informam e alimentam a reflexão dos fiéis leigos e leigas, que sua influência na decisão dos rumos do País (a começar da esfera municipal) é mais forte e duradoura.

IV. Notícias do Congresso Nacional

Introdução

Desde o início da sessão legislativa, em 8 de fevereiro, dois grandes óbices condicionam o Congresso a cumprir sua missão de legislar: o clima pré-eleitoral e a avalanche de Medidas Provisórias (MPs) que trancam a pauta para a votação normal de projetos de lei.

O ano eleitoral já repercute no Legislativo. 127 deputados são pré-candidatos nas eleições municipais de 5 de outubro. No Senado, apenas 3 dos 81 senadores lançaram seus nomes para as eleições deste ano. Nem todos têm chances reais de vitória, mas a certeza de manter o mandato parlamentar permite a alguns participar da disputa para firmarem seu nome para as eleições de 2010.

A pauta do plenário da Câmara permanece travada por MPs. Os deputados terão pela frente mais de uma dezena delas a impedir a votação de quaisquer outras proposições. Há um consenso de que a Medida Provisória exige um novo regime de tramitação. Uma comissão já trabalha alternativas para superar os obstáculos que elas têm criado ao andamento do Legislativo, pois basta uma MP não ser apreciada em 45 dias para provocar o trancamento de pauta, comprometendo sua agenda de trabalhos. O mal-estar manifestado pelos parlamentares deve-se sobretudo porque raramente elas têm a “relevância e a urgência” prescritas pela norma legal.

Desde sua criação, a MP tem despertado o interesse de cientistas políticos, da comunidade jurídica, dos parlamentares e do cidadão em geral. A polêmica transcende as discussões jurídicas e acadêmicas, desafiando qualquer posição extremada. Dura tarefa é sustentar a extinção do instituto ou atribuir-lhe importância absoluta. Se, por um lado, o governante necessita de um instrumento ágil para atender demandas relevantes e urgentes da sociedade diante da lentidão dos processos no Congresso, por outro, considerá-lo como o mais essencial instrumento de governabilidade não parece muito defensável.

Para completar o quadro, o crescente número de CPIs (das Ongs e dos cartões corporativos) vem acirrar os ânimos e alimentar os noticiários para um público curioso por penetrar os meandros da política e seus escândalos.

Busca de paz no trânsito

O projeto de lei nº 2733/08, que restringe o horário para publicidade de bebidas, e a medida provisória 415/08, que proíbe a venda de bebidas alcoólicas no varejo às margens das estradas, são motivos de tensão da Câmara. O cerco do governo às propagandas de álcool e à venda de bebidas alcoólicas nas rodovias federais enfrenta no Congresso o pesado lobby da indústria de bebidas. Integrantes da Frente Parlamentar em Defesa do Trânsito Seguro se reuniram com o relator da MP que proíbe a venda de bebidas alcoólicas nas margens de rodovias federais, e propuseram punições mais rigorosas para motoristas embriagados envolvidos em crimes de trânsito. O presidente da Frente afirmou que "pouco adianta, por exemplo, o governo ser duro com os comerciantes instalados às margens das rodovias, se não consegue ser eficiente na fiscalização do motorista infrator". Não será fácil a votação. Acontece que 51 deputados e 11 senadores declararam ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE) terem recebido R$ 4,5 milhões de fabricantes de cerveja, vinho e cachaça na campanha eleitoral. Como votarão agora propostas que contrariam os interesses da indústria de bebidas alcoólicas?

Regulamentação das Centrais Sindicais

Os deputados finalizaram a votação do projeto que regulamenta as centrais sindicais e aprovaram uma emenda do Senado que mantém o desconto obrigatório da contribuição na folha de pagamento, sem autorização prévia do trabalhador. Foi rejeitado o destaque que pretendia manter essa autorização. Agora aguarda a sanção presidencial. De autoria do Executivo, a proposta reconhece as Centrais como entidades coordenadoras da representação dos trabalhadores, repartindo com elas um percentual da arrecadação obtida com a contribuição sindical obrigatória.

Reforma Política

Embora permaneça entre as prioridades na pauta do Conselho de Líderes da Câmara para o ano em curso, a Reforma Política ainda não recebeu providências para sua execução. Entidades da sociedade civil lamentam que temática de tamanha relevância para a democracia seja subestimada pelos nossos representantes legislativos. Apesar de tudo, elas se empenham em prol de uma real Reforma Política e pretendem apresentar um projeto de iniciativa popular para mudar o sistema político e eleitoral brasileiro, tendo como conteúdo a “proibição de candidatura para quem responda em primeira instância a processo criminal ou civil por improbidade administrativa”(10).

Alguns projetos de lei referentes à Reforma Política estão exigindo atenção especial:

- Dar ao eleitor o direito de cassar o mandato do eleito/a que trair as promessas de campanha (de autoria do senador Pedro Simon);

- Regulamentar o artigo 14 da Constituição que trata de plebiscitos e referendos.

Projetos de Lei dão título de teólogo a religiosos

Dois projetos de lei em tramitação no Congresso estão causando polêmica pela liberalidade com que conferem o título de teólogo a líderes religiosos. Para ser teólogo bastaria ter vida de oração ou praticar ação social na comunidade, por exemplo. O primeiro projeto é do senador Marcelo Crivella, bispo da Igreja Universal do Reino de Deus. O outro é do ex-deputado Vitório Galli (pastor da Assembléia de Deus que apresentou também um projeto para retirar de Nossa Senhora Aparecida o título de padroeira do Brasil e mudar a lei que decreta o dia 12 de outubro como feriado nacional) (11). Este último define o teólogo como “o profissional que realiza liturgias, celebrações, cultos e ritos, dirige e administra comunidades; forma pessoas segundo preceitos religiosos das diferentes tradições; orienta pessoas; realiza ação social na comunidade; pesquisa a doutrina religiosa; transmite ensinamentos religiosos, pratica vida contemplativa e meditativa e preserva a tradição”.

Tanto a SOTER (Sociedade de Teologia e Ciências da Religião) como a CNBB têm acompanhado esses projetos. Já estão previstas audiências públicas sobre o assunto.

Código Florestal

Setores organizados da sociedade estão lançando uma Campanha de Comunicação em Defesa do Código Florestal e do fim do Desmatamento em todos os biomas do país. Seu objetivo é aprovar a MP que dá reconhecimento legal ao Código Florestal e rejeitar um Projeto de Lei (PL), já aprovado no Senado, que reduz a reserva legal na Amazônia de 80% para 50% e permite que um desmatamento feito em São Paulo, por exemplo, seja compensado com o plantio de árvores na Amazônia. Se aprovado, é possível que vastas regiões do país fiquem sem florestas – por isso é conhecido como “Projeto Floresta Zero”.

Moral sexual e estatuto da Família

Questões relacionadas à moral sexual e ao estatuto da Família (homossexualismo, células-tronco embrionárias, aborto) têm ganhado cada vez mais espaço no Congresso (e no Supremo Tribunal Federal). Dado que nem sempre levam ao aperfeiçoamento de critérios éticos, mas apenas respondem às novas demandas da subjetividade exacerbada e de cunho hedonista, elas geram conflitos e provocam a reação de quem valoriza a Família como instituição(12). A título de exemplo, vejamos dois projetos de lei com destaque na opinião pública e de acentuada intransigência. Eles têm recebido a devida atenção da CNBB:

O Projeto de Lei 122/2007, que criminaliza a homofobia, define “os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de gênero, sexo, orientação sexual e identidade de gênero”. Além da falta de clareza destes conceitos, o projeto defende teses com conseqüências éticas complexas e penas desproporcionais. Por exemplo, os artigo abaixo consideram crime:

“Art. 4o. Praticar o empregador ou seu preposto atos de dispensa direta ou indireta. Pena: reclusão de dois a cinco anos.” - “Art. 7º Sobretaxar, recusar, preterir ou impedir a hospedagem em hotéis, motéis, pensões ou similares. Pena: reclusão de três a cinco anos.”- “Art. 8º-B Proibir a livre expressão e manifestação de afetividade do cidadão homossexual, bissexual ou transgênero, sendo estas expressões e manifestações permitidas aos demais cidadãos ou cidadãs. Pena: reclusão de dois a cinco anos.”

O Projeto de Lei 1135/91, que descriminaliza o aborto no Brasil e autoriza sua prática até o 9o. mês de gestação, foi várias vezes arquivado e novamente desarquivado. Apresentado em 1991, revoga o artigo 124 do Código Penal que prevê detenção de um a três anos para a gestante que provocar aborto em si mesma ou consentir que outro o faça.

Itaici, 02-04- 2008

Notas:

1.- Isto não significa redução das desigualdades entre os ricos e pobres. Ao contrário: a renda gerada por juros continua crescendo mais que a dos lucros do capital produtivo e esta mais que a do trabalho.

2.- Um especulador norte-americano disse ter lucrado US$2,3 bilhões em 2007, apostando no real. O Brasil é um dos raros cassinos onde os jogadores ganham mais do que a banca. Em fevereiro, as despesas com os juros ultrapassaram R$15 bilhões, bem acima dos quase R$9 bilhões economizados como superávit primário.

3.- Quando em 1932 Getúlio Vargas decidiu comprar os excedentes de café por razões políticas, confidenciou a seus íntimos haver perpetrado um desastre econômico. O êxito daquela medida, porém, fez que dez nos depois discursasse triunfalmente sobre sua “antevisão histórica”.

4.- Hoje é elevada a participação estrangeira nas Bolsas do Brasil.

5.- Este tema foi desenvolvido na análise de conjuntura de fevereiro, para o Conselho Permanente da CNBB.

6.- Em breve o Paraguai fará uma opcão decisiva quanto a seu modelo de desenvolvimento.

7.- O exemplo do México é esclarecedor. Segundo organizações campesinas, após de 14 anos de livre-comércio, foram perdidos dois milhões de empregos agrícolas e oito milhões de agricultores migraram para os Estados Unidos, porque as subvenções à produção são desiguais: 700 dólares para o mexicano e 21.000 dólares para o estadunidense.O México perdeu sua soberania alimentar e importa 40% de suas necessidades em cereais, gastando mais de um terço da receita de exportação petroleira. Em contrapartida, tornou-se grande fornecedor dos Estados Unidos em frutas e legumes, produzidos por grandes empresas agrícolas com trabalhadores nas piores condições. Houve um aumento do emprego industrial, mas nas maquiladoras, por ser o México um país de mão-de-obra barata. Um terço da população depende das remessas de familiares que migraram para o país vizinho (US$ 23 bilhões em 2006, contra 3,6 bilhões em 1995). Não custa lembrar que quem primeiro denunciou o NAFTA, no dia 1º de janeiro de 1994, foram os indígenas de Chiapas. Povos que sobreviveram a cinco séculos de decretos de extermínio têm credibilidade para apresentar-se como guardiões de saberes milenares de convivência harmônica com a natureza.

8.- Para os dirigentes do Comando Sul do Exército dos Estados Unidos, no quadro da guerra contra o terror trata-se de enfrentar os inimigos da ordem - terroristas, contrabandistas e narcotraficantes. Assim como os movimentos sociais foram incluídos na categoria de “comunistas” durante a guerra-fria, hoje são incluídos numa dessas categorias para serem combatidos dentro da guerra global.

9.- Os dados referentes à situação dos povos indígenas no Brasil estão no Relatório de Violência contra os Povos Indígenas, Anos 2006 – 2007, organizado pelo Conselho Indigenista Missionário (Cimi).

10.- Outro Projeto de Lei de iniciativa popular que desponta de um grupo de parlamentares em conexão com grupos da Igreja (sobretudo os Focolari) “estabelece a execução obrigatória de Lei Orçamentária Anual”. Sua justificativa é de ser um grande passo na responsabilidade fiscal e, também, para levar a sociedade a participar de modo efetivo na elaboração, implementação e execução do orçamento.

11.- Esse projeto propõe que Nossa Senhora Aparecida seja considerada padroeira apenas dos “brasileiros católicos apostólicos romanos” e substitui “culto” a Nossa Senhora por “homenagem”. O projeto está na Comissão de Educação e Cultura da Câmara, com acompanhamento especial.

12.- No dia internacional da Família, 15 de maio, haverá um seminário no Congresso sobre A Família no Parlamento, tratando as Influências da Mídia sobre a Família (com uma exposição sobre "A internet, os jogos eletrônicos e a educação dos filhos"); e Prevenção de situações de risco que afetam a família: “A influência do álcool nos membros da família".

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