O verdadeiro patriotismo é o que concilia a pátria com a humanidade.
Joaquim Nabuco, 1849-1910

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quarta-feira, 6 de fevereiro de 2008

O Monroe e o Garrincha

A América Latina está sendo obrigada a mudar sua inserção internacional, e deixar para trás a sua
longa “adolescência assistida”, dentro da geopolítica e da economia do sistema mundial. Nesta nova
situação, vale refletir sobre uma velha anedota futebolística.

José Luís Fiori

Deu na Agência Carta Maior:
Em agosto de 1823, o ministro de relações exteriores da Inglaterra, George Canning, propôs ao embaixador americano em Londres, Richard Rush, uma declaração conjunta, contra qualquer "intervenção externa", na América Latina. O presidente James Monroe,apoiado no seu secretário de estado, John Quincy Adams, declinou o convite inglês. Mas três meses depois, o próprio Monroe propôs ao Congresso Americano, uma doutrina estratégica nacional quase idêntica à da proposta inglesa. Foi assim que nasceu a “Doutrina Monroe”, no dia 2 de dezembro de 1823. Como era de se esperar, os europeus consideraram a proposta de Monroe impertinente e sem importância, partindo de um estado que ainda era irrelevante no contexto internacional. E tinham razão: basta registrar que os Estados Unidos só reconheceram as primeiras independências latino-americanas, depois de receber o aval da Inglaterra, França e Rússia. E mesmo depois do discurso de Monroe, se recusaram a atender o pedido de intervenção dos governos independentes da Argentina, Brasil, Chile, Colômbia e México.
[ . . . ]
O “Corolário Roosevelt da Doutrina Monroe”, ficou conhecido por sua defesa do direito de
intervenção dos Estados Unidos nos estados americanos “incapazes” de manter sua ordem
interna, e de cumprir com seus compromissos financeiros internacionais. Já não se tratava,
portanto, de uma estratégia defesa contra inimigos externos, como se pode ver, numa carta
enviada por Roosevelt ao seu secretário de estado, em maio de 1904: “Qualquer país ou povo que
se comporte bem, pode contar com nossa amizade cordial. Se a nação demonstra que ela sabe agir
com razoável eficiência e decência nos assuntos sociais e políticos, se ela sabe manter a ordem e
paga suas dívidas, ela não precisa ter medo da interferência dos Estados Unidos. Um mau
comportamento crônico, ou uma impotência que resulte no afrouxamento dos laços de civilidade
social podem requerer, na América ou em qualquer outro lugar do mundo, a intervenção de
alguma nação civilizada, e no caso do Hemisfério Ocidental, a adesão dos Estados Unidos à Doutrina
Monroe, pode forçar os Estados Unidos a exercer um poder policial internacional.” (Pratt, 1955: 417).
[ . . . ]
Alguns anos depois, em 1914, no início da administração de Woodrow Wilson, o novo presidente
democrata agregou um novo item à política latino-americana dos Estados Unidos, com uma
simples frase de efeito, dita para um interlocutor inglês: “Eu vou ensinar estas republicas
sul-americanas a eleger homens bons” (idem, p:423). Com este objetivo, Woodrow Wilson
completou o desenho da estratégia continental dos Estados Unidos no século XX, baseada em três
direitos de intervenção – auto-atribuídos - em qualquer território do “hemisfério ocidental”: i) em
caso de “ameaça externa”; ii) em caso de “desordem econômica”; e, iii) em caso de “ameaça à boa
democracia”. No período da Guerra Fria, os Estados Unidos patrocinaram em todo continente,
guerras civis, intervenções militares e regimes ditatoriais contra um suposto “inimigo externo”.
Depois do fim da Guerra Fria, patrocinaram nos mesmos países, intervenções financeiras e
reformas econômicas neoliberais, para combater uma suposta “desordem econômica interna” e
garantir o cumprimento dos compromissos financeiros internacionais da América Latina.
E, finalmente, a partir de 2001, os Estados Unidos incentivam forças e opinião publica, contra os
governos “populistas autoritários” latino-americanos que seriam –para eles - uma ameaça à
democracia.

Agora bem: as eleições presidenciais de 2008, já fazem parte de um processo de realinhamento da
estratégia internacional dos Estados Unidos. Este processo deverá tomar alguns anos, mas é muito
pouco provável que os Estados Unidos abram mão dos três “direitos de intervenção” que orientaram
sua política hemisférica, durante o século XX. Assim mesmo, neste início do século XXI, a
“globalização” do sistema inter-estatal, e a acelerada expansão política-econômica da Ásia, criaram
uma pressão competitiva global que já envolve quase todos os “estados-economias nacionais” do
mundo. Por isto, a América Latina está sendo obrigada a mudar sua inserção internacional, e
deixar para trás a sua longa “adolescência assistida”, dentro da geopolítica e da economia do
sistema mundial. Nesta nova situação, vale refletir sobre uma velha anedota futebolística, e seu
ensinamento universal: a célebre indagação de Garrincha, após ouvir as orientações do técnico
Vicente Feola, antes do jogo com a União Soviética, na Copa de 1958, na Suécia: "o senhor já
combinou com o adversário para deixar a gente fazer tudo isso?" Garrincha sabia que no futebol
não há como “combinar com o adversário”. Da mesma forma que na luta pelo poder e pela riqueza
internacionais, onde só existe um jeito de ganhar o “jogo”: antecipando-se às intenções e impondo
sua própria estratégia, aos concorrentes e adversários.

José Luís Fiori, cientista político, é professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Leia na íntegra em
http://www.cartamaior.com.br/templates/colunaMostrar.cfm?coluna_id=3817

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