O verdadeiro patriotismo é o que concilia a pátria com a humanidade.
Joaquim Nabuco, 1849-1910

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segunda-feira, 1 de outubro de 2007

A independência de Kossovo e o futuro do conceito de soberania nacional

Deu na Agência Carta Maior:
Na
conferência de cúpula do G8, realizada na Alemanha, o presidente George W. Bush insistiu na aprovação imediata do Plano Ahtissari para o Kossovo, que introduz uma nova noção nas relações internacionais: a "independência vigiada".
Francisco Carlos Teixeira

Na conferência cimeira do G8, realizada em Heilingendamm, na Alemanha, entre 21 e 22 de junho de 2007, o Presidente Bush insistiu na aprovação imediata do Plano Ahtissari – de Martii Ahtisaari, ex-presidente da Finlândia, indicado pela ONU como seu representante em Kossovo e, depois, governador provisório da província – sobre a “independência” da província sérvia (1).

Os EUA e a situação em Kossovo

A passagem, triunfal por sinal, do Presidente Bush por Tirana – capital albanesa – reforçou o sentimento pro-albanês (kossovar) da administração americana, levando o presidente a declarar sua pressa na resolução da questão de Kossovo (2). Trata-se de um novo conceito de “independência” – assim mesmo, entre aspas – em virtude da proposta do enviado especial da ONU prever uma forma nova, não registrada na ciência política ou no direito internacional, de soberania, para o novo Estado-Nação emergente da ( última? ) secessão da antiga República Federal da Iugoslávia.
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Kossovo como Questão de Política Internacional

Durante os debates em Heiligendamm duas posições ficaram nítidas: de um lado os Estados Unidos, a Alemanha, Croácia e Polônia exigindo uma aceitação imediata do Plano Ahtissari pelo Conselho de Segurança da ONU; por outro lado, a Federação Russa – presente através de seu presidente Vladimir Putin – que considera o plano – tal como está - “inaceitável”. Moscou exige a continuidade das negociações entre a Sérvia e o governo provisório albanês de Prístina ( capital kossovar ), ainda o tempo necessário para um arranjo das posições de ambas as partes.
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O Plano Ahtissari

Ora, a solução embutida no Plano Ahtissaari contradiz frontalmente a Resolução 1244 – integridade e soberania sérvia sobre o território, sendo inaceitável para Belgrado. Por outro lado, o governo albanês ( em Tirana, não em Prístina ) também considera a “semi-independência” inaceitável. Para Tirana a semi-independência impediria, num futuro já antevisto, que a população kossovar optasse por sua anexação pela Albânia, realizando o sonho da “Grande Albânia” (6). A Resolução aprovada pelo Conselho de Segurança da ONU, e depois adotada pela OSCE, estabelecia os seguintes pontos:

i. Seria constituída uma força internacional da ONU que deveria proceder à desmilitarização da região, com a retirada das forças sérvias;
ii. Retorno de todos os refugiados sob supervisão do Alto-Comissariado da ONU para Refugiados;
iii. Estabelecimento de bases de uma autonomia substancial para a província ( não há qualquer referência a independência ), e
iv. A desmilitarização do UÇK, Exército de Libertação de Kossovo.
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A solução do desmembramento – proposta pelo International Herald Tribune em maio de 2007 – não é aceita por nenhuma das partes. Por esta proposta, os territórios albaneses do Kossovo seriam integrados a Albânia, enquanto os territórios habitados por sérvios – cerca de 120/180 mil pessoas – seriam incorporados pela Servia. A solução – aparentemente óbvia, por evitar a criação de mais um Estado fraco e problemático – implicaria em quebrar a regra do respeito às fronteiras européias existentes, conforme o decidido nas conferências de Yalta e Potsdam, de 1945. O começo de revisão de fronteiras poderia ter conseqüências incalculáveis no continente e não existiriam garantias de sua limitação ao caso kossovar.

Qual a solução?

Por esta razão, nem a U.E., nem a ONU, e nem a Albânia, aceitam o desmembramento do território, com as regiões povoadas por sérvios sendo anexada por Belgrado e as demais partes do Kossovo tornando-se um Estado soberano ou anexado por Tirana (7) . Numa postura mediadora, a França ( seguida da Espanha, Holanda, Bélgica e Grécia ) propõe um prazo mais largo de negociações entre as partes do conflito. Trata-se de uma postura relevante, uma vez que a França é um país-chave da U.E. e parte das forças do Kfor estabelecidas na região. Além disso, o representante francês era o próprio presidente Nicolas Sarkozy, que se propôs, durante a campanha eleitoral deste ano, a servir de ponte entre os Estados Unidos e a U.E., cerrando a “fratura atlântica” da Era Chirac.
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A posição russa, por sua vez, é simples e direta: 1. continuidade da vigência da Resolução 1244, de 1999, do C.S. da ONU, que estabeleceu a retirada das forças policiais e militares sérvias do território; 2. o reconhecimento da soberania sérvia sobre o território e 3. o respeito princípio áureo das independências pós-soviéticas acerca das fronteiras (ou seja, nenhum desmembramento ou nenhuma revisão das fronteiras estabelecidas em Yalta e Potsdam) (8).

Moscou e o Kossovo

Assim, Moscou – apoiando fortemente o governo sérvio – exige o cumprimento integral da Resolução 1244, onde está garantida a soberania de Belgrado sobre o Kossovo. Além disso – ressalta Moscou -, Kossovo nunca foi uma “república federada” da antiga federação iugoslava, nos mesmos termos da Croácia ou da Eslovênia, por exemplo, tratando-se, em verdade, de uma “província” (9) . Moscou destaca que na antiga configuração constitucional iugoslava, Kossovo era uma província nacional dotada de autonomia, com maioria albanesa ( dita “kossovar”. ). Assim, ao ver seus argumentos não reconhecidos no Plano Ahtissari, Moscou comunicou, em 20 de junho de 2007, aos demais membros do C.S., da ONU, que exerceria seu direito de veto caso o plano fosse formalmente apresentado para apreciação do C.S. Os países patrocinadores – Estados Unidos, Reino Unido e França – resolveram proceder a consultas mútuas e esperar a possibilidade de estabelecer um prazo na Cimeira do G8, na Alemanha (10).
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Duas expressões mereceriam destaque na fala do diplomata russo: solução negociada e recusa de solução diferenciada. No primeiro caso, os russos recusam uma solução unilateral, como a proclamação da independência pelos kossovares – o que para Moscou poderia representar a ruptura de um dique no direito internacional. Enquanto isso, “solução diferenciada” seria o rompimento com o principio da vigência das fronterias soviéticas existentes depois de 1945 ( e por conseguinte, das próprias fronteiras europeus como existentes hoje ) e a conseqüente abertura de outro temível precedente (11) . Em suma, Moscou – e agora Paris, Bruxelas e Atenas – esperam a independência de Kossovo, mas somente em comum acordo com Belgrado, e com a assinatura de um acordo sob égide da ONU.

1. Kossovo,um território com 10 887 km2, conta hoje com aproximadamente 2.100.000 habitantes, dos quais algo em torno de 120 ou 180 mil são sérvios ( outros 200 mil fugiram para a Sérvia depois da guerra de 1999. Os ciganos formam ainda 2.4% da população, vivendo em situação bastante precária. Além disso cerca de 1% da população é turca, herança da época em que o Impéria otomano dominava a região. Ver em : http://www.tlfq.ulaval.ca/AXL/europe/Kosovo.htm

2. Ver LE MONDE Diplomatique. Kosovo ( artigo de capa assinado por Ignacio Ramonet ), Julho 2007, 54e., no. 640.


3. JUTARNJI LIST ( Zagreb ). PAVIC, S. Kosovo: scénarios catastrophes à Prístina ( Edição em Língua Francesa, doravante ELF ), 03/05/2007, p. 19. Tal conceito de “ independência vigiada” , já em prática na Bósnia-Herzegovina, assemelha-se, conforme vários autores, por demais, com o conceito de “protetorado”, conforme colocado em prática pela Sociedade das Nações depois da Paz de Versalhes, em 1919.


4. PRIMAKOV, Evgeni. Au Coeur du Pouvoir. Paris, Éditions des Syrtes, 2001, p. 226.


5. Idem, Op. Cit., P, 225.
6. Para o debate sobre a construção de uma “Grande Albânia” ver:
http://www.kosovo.net/gralbania.html

7. INTERANTIONAL HERALD TRIBUNE ( Paris, édition française ). Plaidoyer pour une partition. 14/02/2007, p. 16.

8. NEZAVISSIMAIA GAZETA ( Moscow ). Why Moscow is against? ( Edição em Língua Inglesa, doravante ELI ), 28/06/2006, p. 37.

9. Tal distinção é fundamental para Moscou. Com uma constituição federal muito parecida com o regime da ex-Iugoslávia, Moscou insiste em distinguir entre as “repúblicas federais”, tais como a Ucrânia ou a Croácia e as províncias ou regiões autônomas, como Kossovo ou ( no caso russo ) a Tchetchênia ou Daguestão. As primeiras gozavam de direito constitucional de secessão, sendo portanto a independência um processo legal. Já as regiões autônomas – Kossovo, Daguestão ou Tchetchênia – são parte integrantes das “federações” sucessores da URSS e da Iugoslávia. A independência de tais regiões seria, neste caso, o desmembramento de um Estado-Nação. Outros países entendem da mesma forma a distinção, como a Índia ou a China Popular. Assim, embora a independência seja possível, deveria – necessariamente – ser negociada pelas partes e não declarada por uma força externa. Da mesma forma, invertendo a sua posição, Moscou ameaça a aplicar ao espaço pós-soviético o mesmo tratamento dispensado pelas potências ocidentais ao Kossovo. Assim, Moscou – na esteira do reconhecimento de Prístina – apoiaria a independência das “repúblicas” da Abkhazia, Ossétia do Sul e Adjaria em luta contra a Geórgia ( aliada dos Estados Unidos ) e apoiaria a anexação do Alto-Karabakh pela Armênia, em detrimento do Azerbaidjão ( outro aliado americano no Cáucaso ). LE MONDE Diplomatique. Escalade Militaire dans le Caucase. Julho de 2007, 54 année, no. 640, pp. 8-9.

10. Kossovo é considerado pelos sérvios o “berço” da nacionalidade, local onde surgiu identidade nacional sérvia, representada por um grande número de monastérios e igrejas bizantinas, marcando uma fronteira civilizatória entre a cultura cristã-bizantina ( em recuo ) e a cultura islâmico-turca, em avanço nos séculos XIII, XIV e XV sobre a Península dos Bálcans. Aí, no Kossovo, travaram-se as grandes lutas pela manutenção da autonomia e da identidade sérvia. Na II Guerra Mundial os alemães, visando destruir a Sérvia enquanto um pólo de resistência anti-germânica nos Bálcans, realizaram ampla limpezam étnica no Kossovo, expulsando os sérvios e aliando-se os kossovares islâmicos lcoais, que só então tornaram-se maioria no território.

Para mais informações ver:
http://www.kosovo.net/hist.html;http://www.kosovo.net/sk/history/kosovo_saga/default.htm
Ver também: AMNESTY INTERNATIONAL. «Les droits fondamentaux des minorités bafoués au Kosovo» dans Archives, 29 Avril 2003,
http://web.amnesty.org/library/index/fraeur700112003
Para a historiografia de Kossovo: MALCOLM, Noel. Kosovo, a short history. Londres, Macmillan Books, 1998. 11. FRANKFURTER ALLGEMEINE ( Frankfurt ). Auseinendersetzung um Kosovo. 14/06/2007, p. 7.
Francisco Carlos Teixeira é professor Titular de História Moderna e Contemporânea da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Leia na íntegra em http://www.cartamaior.com.br/templates/colunaMostrar.cfm?coluna_id=3731

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