Em face de mais uma crise mundial que parece explosiva, com a fome e a inflação de alimentos se tornando noticiário nos vários cantos do planeta, conversamos com o professor do departamento de Geografia da USP Ariovaldo Umbelino. Para Umbelino, a atual situação não deixa a menor margem para diagnósticos ilusionistas: a crise alimentar resultou da total incapacidade do mercado para conduzir à segurança e à soberania alimentar. No Brasil, a ausência de reforma agrária foi também determinante, e a situação é tendencialmente explosiva em função da escalada dos biocombustíveis. Confira abaixo entrevista exclusiva.Correio da Cidadania: A que se pode atribuir, pensando globalmente, o atual problema da fome: à formação especulativa de estoques, à queda de safras, à tomada de terras para os cultivos agroindustriais, todos eles comprometendo a produção de alimentos?
Ariovaldo Umbelino: Em primeiro lugar, há de se levar em conta que a falta da produção de alimentos na atual conjuntura tem uma série de motivos, que vou tentar enumerar.
Primeiro, o que está em jogo é uma crise estrutural no interior do sistema produtivo que o capitalismo adotou no neoliberalismo, com a mudança da sistemática de controle da produção de alimentos, antes baseada no sistema de estoques e hoje baseada no livre comércio, ou seja, na disponibilidade dos estoques no mercado. Essa mudança está revelando agora suas conseqüências. Portanto, essa é uma primeira razão, e ela é estrutural.
Podemos também lembrar que há uma redução dos estoques em função da ‘subprime’, qual seja, dos problemas no mercado financeiro norte-americano. Uma parte dos fundos se dirigiu à compra de commodities (mercado de futuro), o que acelerou o processo especulativo em função da queda dos estoques e da possibilidade de oferta de alimentos no mercado futuro. Essas são questões estruturais e estão associadas.
A segunda razão é de natureza conjuntural, e deriva do aumento do preço do petróleo. Toda a produção do agronegócio pós-revolução verde, e agora, nesse período do neoliberalismo, está assentada no setor agroquímico, e evidentemente que este é comandado pela lógica do preço do petróleo. Se sobe o preço deste, o custo da agropecuária também sobe e, consequentemente, deriva daí parte da responsabilidade pelo aumento dos preços dos alimentos.
O terceiro motivo, nem por isso de menor importância, pois todos esses são processos simultâneos, está no aumento do consumo devido a uma certa melhoria das condições de algumas populações, sobretudo da China e da Índia, que têm ampliado a importação de alimentos. Mas não é essa a principal razão, como se quer fazer crer no Brasil.
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CC: Mas voltando, então, aos determinantes da crise alimentar em escala global, você citaria algum outro fator, como, por exemplo, a produção dos biocombustíveis?AU: Outra causa também conjuntural, que pode vir a se tornar estrutural, é a opção norte-americana pela produção do etanol a partir do milho, bem como o caminho tomado pelos países da União Européia de produzir o etanol a partir de grãos. É claro que essa opção dos EUA, hoje o maior produtor mundial de etanol, fez com que uma parte do milho destinado à alimentação humana e animal fosse destinada à produção de etanol, o que por sua vez gerou os mecanismos especulativos na queda dos estoques de milho. Essa queda, por sua vez, puxou pra cima os preços dos demais grãos: soja, trigo, arroz.
Volto a insistir, essa razão é conjuntural, mas pode vir a se tornar estrutural, porque os EUA não têm mais terras disponíveis à agricultura para ampliar sua produção de milho e continuar mantendo sua produção de trigo e soja. Essas três culturas competem entre si. Portanto, se aumenta a área de uma, diminui a de outra. Além do mais, ampliar a área de cultivo nos EUA sai muito caro, os preços dos alimentos não compensariam. E a essa questão interna dos EUA se soma o aumento do custo de produção, pelo efeito do petróleo.
Esse é, assim, o quadro que se apresenta no plano mundial.
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CC: E o Brasil, como fica nessa conjuntura?AU: No Brasil, o primeiro efeito aparece no trigo, já que, com o bloqueio das exportações da Argentina, precisamos comprar no mercado mundial, ou seja, nos EUA e Canadá, onde há trigo disponível para exportação. Sendo assim, os preços se elevaram. Não só os preços, pois agora há também o frete, que não existia quando se trazia trigo da Argentina.
Pois bem, o Brasil tem um consumo anual de 10 milhões de toneladas de trigo e produz três milhões, o que nos torna o maior importador mundial de trigo hoje. Sendo assim, inevitavelmente o efeito do trigo terá suas conseqüências no Brasil, não só no pão, mas em todos os produtos nos quais se utiliza trigo.
Somos o único país do mundo em se prega essa tese maluca do neoliberalismo, de que comida tem de ser oferecida no mercado a quem puder pagar mais, como propõem os economistas neoliberais. Claro que isso tira do país a possibilidade de obter uma mínima segurança alimentar, nem digo soberania.
A lógica do neoliberalismo é essa: manda-se comida a quem paga mais, não a quem tem fome. Nem para o próprio povo do país. A lógica neoliberal não está assentada na segurança, quanto menos na soberania alimentar.
Como parte desse mecanismo, agravando-o ainda mais, vêm os possíveis desdobramentos futuros. O Brasil, com seus três milhões de toneladas produzidas de trigo, vai fazer o que se a demanda do mercado mundial for superior? Os produtores de trigo vão exportar, como fizeram no ano passado.
Pensando, por exemplo, no feijão, por que chegou a faltar esse produto em nosso mercado, se o Brasil é um grande produtor mundial? Esse foi o reflexo indireto de outros fatores. O aumento, já desde o ano passado, do preço do milho e da soja, assim como o efeito da subida dos preços desses produtos no mercado interno, fez com que as terras destinadas à produção do feijão não o fossem mais. Os capitalistas converteram a área de produção de feijão em terra para cultivo do milho, que tinha preços mais vantajosos no mercado mundial, em função da escalada provocada pelo etanol americano. Escalada que atingiu também a soja, que, na falta do milho, o substitui na ração animal - não na alimentação humana.
É bem provável que nesse começo de ano, com a entrada da principal safra de feijão, não haja falta, mas a perspectiva é que, no final do ano, o produto venha a faltar. Se os preços do milho e da soja continuarem mais vantajosos, é óbvio que os capitalistas continuarão privilegiando a sua produção.
No caso do arroz, os estoques de que o Brasil dispõe, que são baixíssimos, mais a perspectiva de safra, já praticamente colhida, momentaneamente não sinalizam para uma situação de falta do produto. Porém, se os preços do mercado internacional estourarem, será iniciado um processo de se destinar parte da produção do mercado interno ao externo.
Temos, portanto, o ‘deus mercado’ determinando todos esses mecanismos nefastos associados a produtos essenciais à nossa segurança alimentar.
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CC: Ou seja, estamos pensando em produzir etanol sem sequer termos assegurado nossa segurança alimentar.AU: E como o Brasil tem resolvido, em face da adoção da política neoliberal, o mercado de arroz e feijão? Quando há falta, importa. Então, o país usa a disponibilidade do produto no mercado mundial como instrumento de controle da sua segurança alimentar. Mas, à medida que os países bloqueiam a exportação, não existe mais essa possibilidade, ou seja, o Brasil não teria a chance de buscar no mercado mundial o arroz necessário para manter seus preços elevados no mercado interno.
Esse é o quadro mais crítico do mercado interno. Bom, pode-se questionar por que não se aumenta a produção de arroz, feijão e mandioca. A resposta é que a política agrícola voltada ao alimento básico no Brasil não permite aos agricultores reporem os custos de produção. Quem produz esses alimentos são, em grande maioria, os pequenos agricultores, e eles não têm como resolver o problema da produção, voltando sua atenção a outros produtos. Se pegamos Paraná, Santa Catarina e parte do Rio Grande do Sul, todos produtores de feijão, vemos que a tendência é plantar milho, pois possui preços mais vantajosos.
Portanto, o efeito na alimentação brasileira é direto e indireto no que se refere ao mercado dos alimentos básicos. Poder-se-ia colocar nesse bolo a carne. O Brasil está se tornando o maior exportador mundial de tudo quanto é tipo de carne. Conseqüentemente, é claro que, se a produção for destinada ao mercado externo, o interno passa a ser regulado pela disputa de preços. Ou o mercado interno paga preços compatíveis ao mundial, ou se investe em produzir para o mercado mundial.
Pensando ainda no etanol no Brasil: a cana é responsável direta pelo aumento no custo do alimento? Claro que não, mas de forma indireta, sim. Ainda que uma parte da expansão da cultura da cana seja feita em cima de área de pastagem.
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CC: No estado de São Paulo, a paisagem se transformou de maneira incrível, só se vêem plantações de cana em longos trechos de suas rodovias.AU: E para completar, naqueles 261 mil hectares que deixaram de ser plantados com feijão, seria possível produzir 400 mil toneladas do produto, ou seja, 12% da produção nacional. Pode-se dizer que o país não diminuiu essa produção, apenas plantou em outras regiões. É verdade, mas não houve incremento de produção. Seria possível plantar em outras regiões e fazer crescer a produção de feijão no país, mas isso não aconteceu. Quanto ao arroz, nos 340 mil hectares não plantados, poder-se-ia produzir 1 milhão de toneladas do produto, o equivalente a 9% do total do Brasil.
Este é um estudo que estamos ampliando para os demais produtos para mostrar exatamente que não estamos diante de um efeito momentâneo, e sim de uma tendência. Quanto mais se expandir a produção de uma cultura que disputa espaço com outras, naturalmente haverá reflexos nessa produção concorrente.
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CC: Portanto, a reforma agrária seria uma das soluções a longo prazo?AU: É uma solução a curto, médio e longo prazo. O pequeno agricultor produz primeiramente o alimento que precisa para consumo próprio e, automaticamente, ele gera excedentes. Se o Brasil tivesse assentado sua política de produção de alimentos na reforma agrária, hoje o país não estaria vivendo essa situação.
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CC: Toda a extensa fundamentação que você fez aqui retrata uma crise profundamente estrutural. Mas o estouro dessa crise alimentar agora, em meio à crise hipotecária americana, não seria uma curiosa coincidência?AU: Eu penso que a crise norte-americana é estrutural. Trata-se de uma crise do setor financeiro e este é o coração do capitalismo na etapa na qual vivemos. É também inegável que uma parte dos fundos investiu em commodities. Não se trata, portanto, de uma ação somente ideológica, onde uma crise vem para encobrir a outra, penso que não é esse o caminho. Há, isto sim, o efeito da crise nessa mudança dos fundos para as commodities.
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CC: Em meio a toda essa discussão, às vezes surgem declarações como a do governador do Mato Grosso, Blairo Maggi, para quem, em face da crise alimentar, seria necessário ampliar o desmatamento legal. Como você encara uma declaração dessas?AU: Enxergar no desmatamento a alternativa, num país que tem 120 milhões de hectares de terras comprovadamente improdutivas, registradas no cadastro do Incra, que não faz a reforma agrária porque o governo não quer, somente pode ser encarado como uma loucura do modelo do agronegócio.
Na realidade, há dois centros na produção de grãos. Um é o histórico, no sul. O outro é o Centro-Oeste, a nova área do agronegócio e onde ficam os defensores do desmatamento.
Esse setor do agronegócio situado no Centro-Oeste, que tem no governador Maggi seu representante maior, está acenando com essa alternativa porque, obviamente, na conjuntura atual, o preço da carne também está em alta no mercado mundial. Não compensa fazer a reversão de área de pastagem para a produção de grãos, como em anos anteriores. Então, na verdade, os atuais produtores de grãos estão espremidos entre cumprir a legislação ambiental e expandir sua área de produção. E eu só posso classificar isso como um ato de loucura.
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Colaborou Gabriel Brito. Leiam na íntegra em http://www.correiocidadania.com.br/content/view/1750/9/
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