O verdadeiro patriotismo é o que concilia a pátria com a humanidade.
Joaquim Nabuco, 1849-1910

sexta-feira, 26 de dezembro de 2008

2008 - Um retrospecto sóbrio

Escrito por Wladimir Pomar
22-Dez-2008


Passados seis anos de governo Lula, com a participação do PT, continua válida a hipótese de que as vitórias de 2002 e 2006 não representaram revoluções políticas ou sociais. No entanto, também continua válida a tese de que elas representaram revoluções culturais, na medida em que romperam com os medos históricos e permitiram a vitória democrática e popular no contexto das regras eleitorais burguesas.
[ . . . ]
Nesse período, independentemente das teorias correntes e dos zigue-zagues, conformou-se uma frente ampla de apoio ao governo Lula, teoricamente para enfrentar as conseqüências de mais de dez anos de hegemonia neoliberal.

[ . . . ]
A classe dos trabalhadores assalariados, apesar do aumento das taxas de emprego, permanece uma classe dispersa (pela dispersão das unidades produtivas) e fragmentada (pelos desempregos estrutural e conjuntural, ainda presentes). A classe dos camponeses pequeno-proprietários também continua submetida a intenso processo de fragmentação, com a destruição de unidades familiares e a expulsão de camponeses das terras em que trabalham.
[ . . . ]
As classes médias, embora tenham pago a principal cota pela continuidade parcial da política monetária, se beneficiaram da melhoria do ambiente econômico dos anos mais recentes. Com isso, estão ampliando seu apoio ao governo Lula, como mostra pesquisa recente, que aponta 70% de aprovação para o presidente. Por outro lado, como ainda se encontram em processo de proletarização, com seus padrões de vida ameaçados de rebaixamento, e fragmentadas social e politicamente, essa inflexão a favor do governo pode mudar diante de qualquer evento que suponham negativo.
[ . . . ]
O problema é que, mesmo sendo de nível elementar, as reivindicações desses segmentos populares não dependem apenas de políticas compensatórias e do crescimento econômico. Tanto aquelas reivindicações quanto as políticas que pretendem atendê-las confrontam-se com a crescente tendência de concentração da riqueza e, portanto, com o agravamento da distribuição desigual da renda.
[ . . . ]
Como isso não ocorreu até o momento, o governo Lula tem se pautado pela timidez no atendimento às demandas dos micros, pequenos e médios capitalistas, urbanos e rurais, que o apoiaram. Esses setores, desestruturados em virtude do desarranjo neoliberal, tinham expectativa no crescimento das atividades produtivas, proteção contra a competição selvagem das grandes corporações, abertura de mercados para seus produtos e redução dos custos de mão-de-obra e dos tributos.
[ . . . ]
Quando lutaram contra a candidatura Lula, em 2002, as burguesias estrangeiras já viviam uma situação de crise econômica. Procuravam sair dela através da corrida armamentista e da produção de guerras (caso explícito das burguesias norte-americana e inglesa) e por meio da especulação financeira, segmentação produtiva, organização de blocos regionais, domínio das organizações multilaterais etc.
[ . . . ]
Já a segmentação produtiva, com a industrialização de países com grandes contingentes agrários, contribuiu para a elevação da taxa média de lucro do capital, mas teve efeitos indesejados. Transferiu postos de trabalho, aumentou a dependência econômica das grandes potências em relação aos países emergentes e criou concorrentes efetivos que enfraqueceram o poder econômico, não só das corporações capitalistas, como dos seus países de origem, reduzindo suas pretensões de dominar as organizações multilaterais.
[ . . . ]
O mesmo ocorreu com a grande burguesia nativa. Ela também se encontrava no redemoinho da crise econômica mundial, mas viu-se beneficiada pelas novas taxas de crescimento do Brasil. Assim, embora seu viés ideológico tenha se mantido fortemente anti-Lula e anti-PT, ela foi obrigada a entrar numa certa defensiva, para evitar que a oposição social e política interferisse negativamente sobre seus lucros.
[ . . . ]
Por outro lado, o neoliberalismo perdeu, mas não morreu, e continua tendo algum poder de influência. A burguesia, até hoje, não perdeu a esperança de construir um outro projeto, capaz de arrancar as taxas médias de lucro que lhe permitam a reprodução ampliada.
[ . . . ]
Essa crise contribui para colocar as burguesias em defensiva ainda maior, pelo menos momentaneamente. De certo modo, ela também ameaça as políticas sociais e de crescimento do governo Lula. Este, por outro lado, tem que levar em conta que as forças sociais que sustentam o sistema dominante ainda são relativamente fortes, apesar de estarem em dificuldades. E que as forças sociais que constituem sua base de sustentação ainda são relativamente fracas.

Mas a crise também é uma oportunidade para a mudança desse quadro. Em termos teóricos, o governo Lula pode transformar suas forças de sustentação social e política, relativamente fracas, em relativamente fortes. E as forças sociais e políticas relativamente fortes do sistema econômico dominante em relativamente fracas. Tudo vai depender de como aproveitará os desafios das condições atuais.

Wladimir Pomar é escritor e analista político.
Leiam na íntegra em http://www.correiocidadania.com.br/content/view/2734/46/

segunda-feira, 8 de dezembro de 2008

O Brasil como potência regional e a importância estratégica da América do Sul na sua política exterior

Deu na
Revista Epaço Acadêmico
N. 91, Ano 8, Dez. 2008
ISSN 1519-6186:

Luiz Alberto Moniz Bandeira*


Extensão territorial, poder econômico e poder militar são três fatores que devem ser considerados para qualificar um país como potência e compreender sua posição na hierarquia entre Estados. Estes são os fatores que permitem a um Estado atuar independentemente e influir sobre outros Estados e, portanto, determinar em que condições ele se expressa como potência regional internacional. Um Estado, que dispõe de potencial econômico, força militar e extensão territorial (assumindo, por suposto, que sua população seja correspondente ao espaço que ocupa), pode tornar-se hegemônico, o líder e o guia de um sistema de alianças e acordos de variado alcance.
[ . . . ]
Com mais de 196 milhões de habitantes (em 2007), a extensão territorial de Brasil é apenas pouco menor do que a dos Estados Unidos continental, incluindo o Alaska. Soma cerca de 8.514.215 milhões de quilômetros quadrados e seu litoral se estende por 7.367 quilômetros. Tem 15.735 quilômetros (cerca de 8.000 milhas) de fronteiras, sem litígio, com todos os países da América do Sul (exceto Equador e Chile). E dentro deste vasto território, seus recursos naturais são abundantes: terras férteis para a agricultura, reservas imensas jazidas de ferro e outros minerais metálicos, urânio, biodiversidade, enormes reservas de água e recursos hidroelétricos. E, conforme a estimativa da Associação Brasileira de Geólogos de Petróleo (ABGP), os campos descobertos na Bacia de Santos, litoral do Estado de S. Paulo, contêm 33 bilhões de barris, o que quadruplica as reservas de petróleo do Brasil de 13 bilhões de barris (provados) para cerca de 46 bilhões de barris. Somente no campo de Tupi (litoral de Santos) há cerca de 5 a 8 bilhões de barris. Os dados são ainda muito imprecisos, mas de acordo com Stephanie Hanson, do Council on Foreign Relations, o volume de petróleo na camada pré-sal, que provavelmente se estende por 800 quilômetros, do Espírito Santo, norte do Rio de Janeiro, a Santa Catarina,[3] deve ser da ordem de 70 a 100 bilhões de barris, além de grande volume de gás.[4] O Produto Interno Bruto do Brasil (PIB) do Brasil, conforme a paridade do poder de compra, utilizado pelo Banco Mundial, era em 2007 da ordem de U$S 1,849 trilhão, mais de três vezes maior do que o da Argentina, estimado em U$S 526 bilhões (2005), maior do que o do Canadá, calculado em U$S 1,271 trilhão (est. 2007), do que o do México, U$S 1,353 trilhão (2007 est.), do que o da Espanha ( U$S 1,361 trilhão, est. 2007), igual ao da Itália (U$S $1,8 trilhão, 2007 est.), um pouco menor do que o da França (U$S 2,075 trilhões, 2007 est), que o da Rússia (U$S 2,097 trilhões, 2007 est.) e do Reino Unido (U$S 2,13 trilhão, 2007 est.).[5]
[ . . . ]
Segundo Kissinger, o Brasil via o seu relacionamento com os Estados Unidos como similar a dois pilares gêmeos (twin pillars), cabendo-lhe organizar a América Latina, enquanto cabia aos Estados Unidos a mesma tarefa, na América do Norte, duas empresas trabalhando em harmonia, através de freqüente intercâmbio, e articulando seus propósitos comuns”.[7]
[ . . . ]
A percepção de Kissinger quanto ao papel que o Brasil desempenhava ou pretendia desempenhar tinha fundamento histórico. Desde a segunda metade do século XIX, o Brasil configurou uma potência regional. Possuía um aparelho burocrático-militar capaz de defender e mesmo impor, tanto interna quanto externamente, os interesses de sua elite dirigente, devido ao fato de que não era um simples sucessor do Estado português. Era o próprio Estado português, que se trasladara para a América do Sul, ajustara-se às condições econômicas e amoldara-se à estrutura social da colônia, mas conservara sua contextura institucional, assentada no dogma da soberania una e indivisível da Coroa, a hierarquia, as leis civis, os métodos administrativos, o estilo político, o instrumental bélico e diplomático, com experiência internacional, e o vezo de potência. Daí porque, em 1854, o diplomata Martin Maillefer, ministro plenipotenciário da França em Montevidéu, chamou o Brasil de “Rússia tropical”, que tinha “a vantagem da organização e perseverança em meio dos Estados turbulentos e mal constituídos da América do Sul” [11].
[ . . . ]
América do Sul como conceito geopolítico

O conceito de América do Sul, como conceito geopolítico, e não o conceito de América Latina, um conceito étnico, muito genérico, e sem consistência com seus reais interesses econômicos, políticos e geopolíticos, foi que sempre pautou, objetivamente, a política exterior do Brasil, e até a metade do século XX suas atenções concentraram-se, sobretudo, na região do Rio da Prata, ou seja, Argentina, Uruguai, Paraguai e Bolívia, que conformavam sua vizinhança e com os quais havia fronteiras vivas comuns, i. e, fronteiras habitadas. O entendimento do Brasil era de que havia duas Américas, distintas não tanto por suas origens étnicas ou mesmo diferença de idiomas, mas, principalmente, pela geografia, com as implicações geopolíticas, e esse foi o parâmetro pelo qual se orientou a política exterior do Brasil, que no curso do século XIX se absteve de qualquer envolvimento na América do Norte, Central e Caribe, enquanto resguardava a América do Sul como sua esfera de influência.
[ . . . ]
Alguns meses depois, em 2 de setembro do mesmo ano, o escritor e diplomata colombiano José María Torres Caicedo (1830-1889), em um poema intitulado “Las dos Américas”, referiu-se a “la raza de la América Latina, al frente tiene la sajona raza, enemiga mortal que ya amenaza su libertad destruir y su pendón”, e acrescentou que “la América del Sur está llamada a defender la libertad genuina, la nueva idea, la moral divina, la santa ley de amor y caridad”, pois “el mundo yace entre tinieblas hondas:— en Europa domina el despotismo de América en el Norte, el egoismo, sed de oro e hipócrita piedad”. Posteriormente, em 1861, Torres Caicedo lançou as “Bases para la formación de una Liga Latinoamericana”. E, no mesmo ano, em artigo publicado pela Revue des Races Latines, L. M. Tisserand denominou como l’Amérique Latine o que até então se conhecia, na Europa, como Nouveau Monde ou Amérique du Sud ou républiques hispanoaméricaines. O abade Emmanuel Domenech (1825-1903), autor de Journal d'un Missionnaire au Texas et au Mexique 1846-1852, consolidou o conceito de América Latina, como “le Mexique, l'Amérique Centrale et l'Amérique du Sud”.
[ . . . ]
A América do Sul na política exterior do Brasil

Como salientou o embaixador Samuel Pinheiro Guimarães, em sua obra “Quinhentos anos de periferia”, a América do Sul é a “circunstância inevitável, histórica e geográfica do Estado e da sociedade brasileira”.[15] William H. Seward, secretário de Estado do presidente Abraham Lincoln, convidou o Brasil para intervir no México, juntamente com os Estados Unidos. Dentro América do Sul, porém, o interesse fundamental do Brasil, desde os tempos da colonização, cingiu-se, particularmente, aos países da Bacia do Prata – Argentina, Uruguai, Paraguai e, de certo modo, Bolívia, e o que amplificou ainda mais a importância geopolítica da região, primeiro para Portugal, durante a colonização, e depois para o Brasil, foi o fato de que o abastecimento de Mato Grosso, Goiás e parte de S. Paulo dependia, quase que totalmente, da navegação fluvial.[16] O bloqueio da livre navegação através dos rios da Bacia do Prata configurava casus belli para o governo imperial.
[ . . . ]
José Maria da Silva Paranhos, Barão do Rio Branco, quando ocupou o cargo de ministro das Relações Exteriores (1903-1912), buscou consolidar as fronteiras do Brasil, com todos os seus vizinhos, e sua política exterior pautou-se por diretrizes similares às do tempo da monarquia (1822-1889), ao considerar o continente uma espécie de condomínio, em que o Brasil exerceria livremente sua influência sobre a América do Sul, enquanto as Américas do Norte e Central, bem como o Caribe teriam nos Estados Unidos seu centro de gravitação. Por esta razão, embora o imperador D. Pedro II não aprovasse, pessoalmente, a iniciativa de Napoleão III,[21] ocupando o México, seu governo não aceitou o convite, alegando que não tinha maior interesse na questão. [22] Essa atitude do governo de D. Pedro II deveu-se ao fato de que o Brasil considerava o México fora de sua esfera de preocupação e nunca aspirou a ter qualquer interferência nos países daquela região, considerada como pertencente à órbita dos de influência dos Estados Unidos.
[ . . . ]
Oswaldo Aranha, quando embaixador do Brasil em Washington, tomou em 1935 atitude semelhante à do Barão do Rio Branco, em face da intromissão dos Estados Unidos nos assuntos dos países com os países vizinhos. Advertiu o Secretário de Estado, Summer Welles, de que “nada explicava o nosso (brasileiro) apoio aos Estados Unidos em suas questões na América Central, sem atitude recíproca de apoio ao Brasil na América do Sul”[28]. E, posteriormente, na condição de ministro das Relações Exteriores do presidente Getúlio Vargas (1930-1945), assinou, com Enrique Ruiz-Guiñazú, chanceler da Argentina, o Tratado de 21 de novembro de 1941, cujo objetivo era “estabelecer, de forma progressiva, um regime de intercâmbio livre, que permitisse chegar a uma união aduaneira /.../, aberta à adesão dos países limítrofes”, i. e., aberta à adesão dos países da América do Sul. A Argentina configurava-se cada vez mais importante parceiro comercial do Brasil, escoadouro natural para seus produtos agrícolas e manufaturas. E o presidente Getúlio Vargas, durante a Conferência do Rio de Janeiro, após a qual rompeu as relações com os países do Eixo, não quis constrangê-la ou que o Brasil dela se afastasse, porquanto considerava a amizade entre os dois países “parte integrante de um programa de governo” . [29]
[ . . . ]
O Brasil e os países da região amazônica

Com a intensificação do seu desenvolvimento industrial, o Brasil voltou-se mais e mais para os países da região amazônica, ou seja, para a Bolívia, Peru, Equador, Venezuela, Colômbia, Suriname e Guiana, cuja massa demográfica, no conjunto, representava por volta da primeira metade dos anos 80 do século XX um mercado da ordem de 87 milhões de habitantes, o equivalente a 61% da população brasileira, espalhando-se até o Oceano Pacífico e o Caribe. Era necessário abrir mercados para as suas manufaturas e o comércio da região amazônica com as repúblicas do Pacífico saltou de US$ 173 milhões, em 1972, para US$ 2,3 bilhões em 1982.[31] E seu fomento, visando a integração e unificação da América do Sul, requeria o desenvolvimento dessa imensa região, a Amazônia, que separava os mercados às margens do Pacífico e do Caribe dos centros industriais do Brasil, situados no litoral do Atlântico. O desenvolvimento da Amazônia dependia, entretanto, da cooperação com os países vizinhos, porquanto sete das dez fronteiras internacionais do Brasil localizavam-se quase integralmente naquela região, somando 12.114 km, o que representava cerca de 80% do total de sua fronteira terrestre. Assim, com o propósito de incrementar o desenvolvimento trans-fronteiriço, o Itamaraty, durante o governo do general Ernesto Geisel (1974-1979) empreendeu as negociações, a cargo do embaixador Rubens Ricupero, para a celebração, em 3 de julho de 1978, do Tratado de Cooperação Amazônica. O que inspirou a negociação desse Tratado, com características similares ao Tratado da Bacia do Prata, foi possibilitar sua ocupação de forma racional e evitar que potências estranhas à região se introduzissem na Amazônia, sob qualquer pretexto. Essa preocupação levou o presidente João Batista Figueiredo a evitar que os Estados Unidos, em 1981, interviessem no Suriname, conforme o presidente Ronald Reagan pretendera, para depor o governo de Desiré Delano (Desi) Bouterse, sob a alegação de que ele estava a acercar-se politicamente de Cuba.[32] Assumiu a tarefa de resolver o problema. E conseguiu-o.

Mercosul versus ALCA

A questão Mercosul/ALCA tornou-se destarte o principal ponto das divergências entre o Brasil e os Estados Unidos, por envolver profundas contradições, nas quais interesses econômicos, políticos e estratégicos se entrelaçavam. A ALCA não convinha aos interesses do Brasil, que não se dispunha a permitir, como o fez a Argentina, que seu parque industrial se desmantelasse, se transformasse em sucata, sob nova e devastadora redução de tarifas, nem a suportar crescentes saldos negativos na balança comercial. O embaixador Samuel Pinheiro Guimarães, que fora um dos encarregados das negociações dos acordos de integração Brasil-Argentina, em 1986/1987, quando ainda era o conselheiro e chefe da Divisão Econômica do Itamarati, denunciou a ALCA como parte da estratégia de manutenção da hegemonia política e econômica dos Estados Unidos, “que realizariam seu desígnio histórico de incorporação subordinada da América Latina a seu território econômico e a sua área de influência político-militar”[33], e insistiu em que o governo brasileiro devia abandonar os acordos para sua implementação. “A ALCA levará ao desaparecimento do Mercosul” – advertiu[34].
[ . . . ]
Estes objetivos se evidenciaram em artigo publicado na imprensa, na qual Fernando Henrique Cardoso, antes da reunião, definiu o acontecimento como de “reafirmação da identidade própria da América do Sul como região”, onde a democracia e a paz abriam a perspectiva da integração cada vez mais intensa entre países que mantinham uma relação de vizinhança”.[35] E ressaltou:

“A vocação da América do Sul é a de ser um espaço econômico integrado, um mercado ampliado pela redução ou eliminação das dificuldades e obstáculos ao comércio, e pelo aperfeiçoamento das conexões físicas em transportes e comunicações” .[36]
[ . . . ]
A Cúpula de Brasília teve um caráter estratégico e avançou a possibilidade de integração, não apenas física, econômica e comercial, mas igualmente política, como o presidente Fernando Henrique Cardoso insinuou, ao dizer que era “o momento de reafirmação da identidade própria da América do Sul como região onde a democracia e a paz abrem a perspectiva de uma integração cada vez mais intensa entre países que convivem em um mesmo espaço de vizinhança”. E a afirmação dessa “identidade própria”, diferenciada, por conseguinte, da América do Norte, era o que preocupava Washington, conforme Kissinger exprimiu em sua obra Does America Need a Foreign Policy?[37] Mas a integração política passava necessariamente pela perspectiva de integração do espaço econômico da América do Sul, mediante o entendimento entre “o Mercosul ampliado e a Comunidade Andina (CAN),[38] com a aproximação crescente da Guiana e do Suriname”, conforme o presidente Fernando Henrique Cardoso, apontou, salientando:

“Um acordo de livre comércio entre o Mercosul e a Comunidade Andina será a espinha dorsal da América do Sul como espaço econômico ampliado. Deve, portanto, ser visto como um objetivo político prioritário”. [39]
[ . . . ]
O objetivo político prioritário, na proposta de integração do espaço econômico da América do Sul, evidenciou-se ainda mais quando Fernando Henrique Cardoso declarou que o “Mercosul é mais que um mercado, o Mercosul é, para o Brasil, um destino” – disse o presidente Fernando Henrique Cardoso, em 2001, acrescentando que a ALCA era “uma opção”, à qual poderia aderir ou não. [40] E esta sua frase, exprimindo a continuidade essencial da política exterior do Brasil, repercutiu nos Estados Unidos [41], o que levou Henry Kissinger a constatar que o Mercosul tendia a apresentar as mesmas tendências manifestadas na União Européia, que buscava definir uma identidade política européia não apenas distinta dos Estados Unidos, mas em manifesta oposição aos Estados Unidos[42]. “Especialmente no Brasil, há lideres atraídos pela perspectiva de uma América Latina politicamente unificada confrontando os Estados Unidos e o NAFTA” – Kissinger ressaltou[43]. Segundo observou, enquanto a ALCA era concebida como simples área de livre comércio, o Mercosul era uma união aduaneira, trans-fronteiriça, que teria, por sua natureza, tarifas mais elevadas para o mundo (tarifa externa comum) que entre os estados associados, pretendendo evoluir para um mercado comum, e isto não convinha, porque, provavelmente, afirmaria a identidade latino-americana (sic) como separada e, se necessário, oposta aos Estados Unidos e à NAFTA. “(...) Tudo isso tem criado um potencial debate entre Brasil e os Estados Unidos sobre o futuro do Cone Sul” – Kissinger reconheceu[44]. Com efeito, a diplomacia brasileira tornou a integração da América do Sul, a afirmação de sua identidade própria, a condição prévia para qualquer esforço de integração hemisférica, tal como o que os Estados Unidos estavam a propor, com o projeto da ALCA.[45]

Conflitos na América do Sul

O Brasil estava a exercer de fato a liderança da América do Sul, aceita consensualmente pelos demais governos da região, dado seu enorme peso econômico, político e estratégico, sem pretensões de hegemonia, respeitando as particularidades de cada povo. E a Segunda Reunião de Presidentes da América do Sul realizou-se em Guayaquil, Equador, entre 26 e 27 de julho de 2002, quando foi aprovado o “Consenso de Guayaquil sobre Integração, Segurança e Infra-Estrutura para o Desenvolvimento”, manifestando o propósito de construir “um futuro de convivência fecunda e pacífica, de permanente cooperação” e declarando “a América do Sul como Zona de Paz e Cooperação”. A turbulência social, política e militar nos países andinos dificultava, no entanto, a consecução de tal objetivo e preocupava o Brasil. Em 26 de janeiro de 1995, o conflito armado entre tropas do Equador e do Peru, na fronteira litigiosa em torno do rio Cenepa, perturbara a paz da região. O presidente Fernando Henrique Cardoso atuou no sentido de obter o cessar-fogo, levando os dois países, depois de esporádicos combates, a firmarem um acordo, em Brasília, sob os auspícios dos quatro Estados garantes do Protocolo do Rio de Janeiro, de 1942 – Argentina, Brasil, Chile e Estados Unidos. O Brasil exerceu a liderança no processo de Paz entre o Equador e o Peru e o Exército brasileiro, na Missão de Observadores Militares Equador-Peru (MOMEP), fiscalizou na região do rio Cenepa, fronteira entre os dois países, o cumprimento do acordo.
[ . . . ]
De qualquer maneira, o Brasil não estava disposto a permitir um golpe de estado no Paraguai e contaria com o respaldo da Argentina e do Uruguai, dado que a ruptura da democracia política seria intolerável dentro do Mercosul, bem como em termos do Grupo do Rio e da nova concertação no hemisfério. O compromisso com a democracia, ou seja, a chamada “cláusula democrática” do Mercosul, estava implícito no Tratado de Assunção, tanto que Brasil e Argentina, desde a Declaração de Iguaçu, em novembro de 1985, nunca cessaram de reiterar a adesão aos princípios democráticos, como fundamento da cooperação e da integração, não apenas em termos bilaterais, mas também com respeito aos demais países da América do Sul. O Foro de Consulta e Concertação Política do Mercosul (FCCP) deu grande ênfase à implementação da chamada “cláusula democrática”, o que levou à adoção do Protocolo de Ushuaia pelos países do Mercosul e Bolívia e Chile. A preservação da democracia no Paraguai continuou, porém, a constituir a grande preocupação do Brasil. Pouco depois de contornada a crise, Fernando Henrique Cardoso, em junho de 1996, visitou Assunção, com a intenção de reiterar o respaldo à ordem constitucional, e no mesmo ano os presidentes dos quatro países integrantes do Mercosul assinaram uma declaração, assumindo o compromisso de consultarem-se e aplicarem medidas punitivas, dentro do espaço normativo do bloco, em caso de ruptura ou ameaça de ruptura da ordem democrática em algum estado membro.
[ . . . ]
A guerra civil na Colômbia constituía outro foco de instabilidade, a preocupar o Brasil, devido, sobretudo, à possibilidade de uma intervenção militar, efetuada ou articulada pelos Estados Unidos. O Plano Colômbia, lançado pelo presidente Bill Clinton um dia antes da Reunião dos Presidentes da América do Sul, em Brasília, preocupou o governo brasileiro, uma vez que equacionava o conflito exclusivamente em sua dimensão armada, destinando mais de US$ 1,2 bilhão – cerca de 80% dos US$ 1,3 bilhão prometidos pelos EUA – à compra de material bélico, inclusive aviões, 30 helicópteros tipo Black Hawk e 33 tipo Huey[47], pelo Exército colombiano, e apenas US$ 238 milhões à promoção dos direitos humanos e ao reforço da democracia e do sistema judicial. Ele fora concebido como uma estratégia de guerra, e tudo indicava que os Estados Unidos repetiriam a tática usada em Kosovo, bombardeando intensamente as regiões dominadas pelas Fuerzas Armadas Revolucionarias de Colombia (FARC) e o Ejército de Libertación Nacional (ELN), juntamente com a aspersão de agentes biológicos sobre os cultivos de coca, dado que uma intervenção por terra nas províncias de Caquetá, Putumayo, na Amazônia colombiana, custaria muitas perdas de vida.
[ . . . ]
A partir do final dos anos 90, as relações do Brasil com a Venezuela, onde Hugo Chávez ascendera ao governo, tenderam a estreitar-se cada vez mais. Na Cúpula das América, em Quebec entre 20 e 22 de abril, Hugo Chávez alinhou-se com Fernando Henrique Cardoso, nas críticas à ALCA, e compareceu à reunião da Cúpula do Mercosul, realizada em Assunção, em 21 e 22 de junho, quando formalizou o pedido para o ingresso da Venezuela no Mercosul e, referindo que Fernando Henrique Cardoso dissera que a “ALCA es opción y nuestro destino es el Mercosur”, endossou que “este es nuestro destino, el sur, la Cruz del Sur”[48]. Nos primeiros anos da década de 2000, a situação agravou-se, no entanto, em quase todos os países da América do Sul. O processo de paz fracassou na Colômbia, onde os Estados Unidos aprofundaram sua intervenção na luta contra as FARC, não propriamente para combater o narcotráfico, mas, sobretudo, a fim de garantir o fluxo do petróleo, que saía de lá e do Equador. E, em dezembro de 2001, a Argentina entrou em colapso financeiro, bancarrota, em meio de dramática convulsão social e crise política tão profunda que levou Fernando Henrique Cardoso a advertir o presidente George W. Bush sobre o perigo de uma ruptura institucional, caso o governo de Eduardo Duhalde não recebesse ajuda internacional. Também no Equador a situação configurou-se instável e os indígenas, em fevereiro de 2002, anunciaram que realizariam novas manifestações de massa, em Quito, contra as privatizações promovidas pelo governo de Gustavo Noboa com o fito de protestar contra o não cumprimento do acordo que pôs fim ao levante, no início de 2001[49].
[ . . . ]
Se não tinha condições internas de sustentar-se, apenas respaldado pelas classes médias e altas, o governo da coalizão empresarial-militar, emanado do golpe de 11/12 de abril, defrontou-se outrossim com enormes dificuldades externas para o seu reconhecimento. O Grupo do Rio, que realizava em Costa Rica a XVI Cimeira presidencial, reprovou prontamente a ruptura da ordem constitucional na Venezuela e solicitou ao embaixador César Gaviria, secretário-geral da OEA a convocação urgente do Conselho Permanente, de acordo com o Art. 20 da Carta Democrática Interamericana[52], aprovada na sessão plenária de 11 de setembro de 2001, incorporando a resolução AG/RES. 1080 (XXI-O/91)[53]. A questão fora levantada primeiramente pelo Brasil e os embaixadores na OEA aprovaram uma resolução, em que condenaram “a alteração da ordem constitucional na Venezuela”. Somente em face da atitude de todos os demais estados da região, inclusive México e Canadá, de repudiar o golpe contra o governo de Hugo Chávez, a delegação dos EUA resignou-se a subscrever a moção da OEA. Mas só o fez no sábado, 13 de abril, quando as manifestações de massa haviam compelido Carmona a renunciar e Chávez retornou ao poder[54].

União de Nações Sul-Americanas

A crise na Venezuela não cessou. E o Brasil teve uma atuação ainda mais decisiva, visando a assegurar a estabilidade na Venezuela, em dezembro de 2002, quando o governo de Fernando Henrique Cardoso, com o endosso do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva, decidiu vender ao governo do presidente Hugo Chávez um navio petroleiro com 82 milhões de litros de combustível para enfrentar o desabastecimento provocado pela greve dos trabalhadores da Petróleo de Venezuela SA (PdVSA) e evitar a sua desestabilização. Apesar das críticas, por parte da oposição na Venezuela, à qual a iniciativa do Brasil desagradara, o governo de Lula, logo que inaugurado, tentou intermediar uma solução pacífica para a crise e enviou a Caracas o professor Marco Aurélio Garcia, assessor de Assuntos Internacionais do Presidente. O Brasil tinha investimentos na Venezuela, interesses econômicos, políticos e estratégicos, e não podia permitir a desestabilização do governo de Chávez, que fora eleito duas vezes e obtivera 60% dos votos, conforme o presidente Lula salientou. E daí porque propôs a formação de um grupo dos amigos da Venezuela (não só de Chávez) com a participação dos Estados Unidos e da Espanha, coordenado pelo secretário-geral da OEA, César Gaviria, com a finalidade de intermediar uma solução pacífica, legal e constitucional para o impasse que perdurava havia vários meses.
[ . . . ]
Igualmente com a Venezuela, considerada um dos pilares da integração da América do Sul, o Brasil tratou de aprofundar a parceria principalmente na área energética. A Petrobrás e a PdVSA assinaram 15 acordo que incluíam, entre outros projetos, a exploração de gás e extração de petróleo pesado, pela indústria brasileira, na região do rio Orinoco, e a construção de uma nova refinaria no Brasil, com investimento previsto de cerca de US$ 2 bilhões, com capacidade para produção diária entre 150.000 e 220.000. A entrada de Petrobrás na exploração de gás na Venezuela rompeu o monopólio virtualmente exercido pelas empresas dos Estados Unidos e da Europa e a Companhia Vale do Rio Doce projetou constituir com a venezuelana Corpozulia uma empresa binacional, para a exploração das reservas de carvão natural de Socuy, na Venezuela. Durante sua visita a Caracas, Lula firmou com Chávez vinte acordos de cooperação e investimentos, que incluíam a venda de 20 aviões militares, modelo Tucano, e créditos para a construção do metrô da cidade, bem como na área de defesa e vigilância da Amazônia, onde se previu a possibilidade de realização de exercícios conjuntos dos exércitos do Brasil e da Venezuela. “A solução para a economia da Venezuela, do Brasil e de outros países da América do Sul não está no Norte, além do oceano, mas na nossa integração” – disse Lula. Esses entendimentos entre Brasília e Caracas causaram, decerto, a inquietação de Washington, que tentava abusivamente isolar o governo de Hugo Chávez, por não subordinar-se aos seus desígnios.
[ . . . ]
Essa obra, a Rodovia Interoceânica, com 1.100 quilômetros de extensão, ligando o estado do Acre aos portos peruanos de Matarani, Ilo e Maratani, na região de Madre de Díos, no sudeste peruano, visava a possibilitar que o Brasil alcançasse mais facilmente os mercados da Ásia, através do Pacífico, e levar mais de meio milhão de turistas ao sul do Peru, onde o império inca nasceu e estão as ruínas de Machu Picchu. Ela fora orçada US$ 700 milhões, US$ 417 milhões (60%), financiados pelo Brasil por meio do Proex (Programa de Financiamento às Exportações, administrado pelo Banco do Brasil), e pelo Peru (40%), com o apoio da Corporação Andina de Fomento (CAF). Além da construção da construção da Rodovia Interoceânica foram assinados mais 31 projetos de infra-estrutura para a região, o que significava, em princípio, consolidar a agenda estratégica da integração física e energética que, desde havia alguns anos, estava sendo definida.
[ . . . ]
Essa conexão da Bolívia com o Chile não convinha virtualmente à Petrobrás, que não apenas era a sua maior compradora de gás, incorporando-o à matriz energética do Brasil e aliviando o consumo de petróleo do parque industrial, como também se dedicava à exploração, distribuição e comercialização do petróleo, através de duas subsidiárias - Empresa Boliviana de Refinamiento e Empresa Boliviana de Distribución. Seus investimentos na Bolívia somavam cerca de US$ 2 bilhões, entre 27 multinacionais que lá atuavam, com um peso equivalente a cerca de 10% do PIB boliviano. E o fracasso de Washington na tentativa de impedir a queda de Sánchez de Lozada, seu protegido, permitiu ao Brasil conquistar posição vital na região. Impedida a saída do combustível para o oeste e congelado o projeto de construção do gasoduto, que uniria Tarija ao Chile, as exportações da Bolívia deviam voltar-se para o leste, através de um gasoduto de 3.150 quilômetros, traçado pela Petrobrás desde Santa Cruz de la Sierra, com ramificações até Canoas, no Rio Grande do Sul, e capacidade para transportar 24 milhões de metros cúbicos diários, dos quais cerca de 4 milhões eram importados pela Argentina, onde a Petrobrás comprara a companhia petrolífera Pérez Companc. Quando, porém, a crise voltou a agravar-se, nos primeiros meses de 2005, o governo de Lula, temendo que o presidente Carlos Mesa fosse deposto e ocorresse uma quebra institucional, buscou intermediar o conflito entre o governo e Evo Morales, líder do Movimiento al Socialismo, ao mesmo tempo em que defendia os interesses da Petrobrás.
[ . . . ]
Era de incertezas e conflitos

A Venezuela, a partir do final do governo de Fernando Henrique Cardoso, passou a ocupar relevante papel na política exterior do Brasil, não apenas servindo de contrapeso para a Argentina como também conformando com ela o triângulo estratégico, no processo de integração da América do Sul, o estabelecimento de uma unidade econômica e política entre os países da região, condição necessária e indispensável a uma inserção equilibrada no cenário internacional. Entretanto, assim como a Alemanha e a França constituíram a força propulsora da União Européia, o Brasil e a Argentina, desde os primórdios, configuraram os pilares básicos do Mercosul, o núcleo da Comunidade Sul-Americana de Nações em construção. E a perspectiva era de que a Argentina executasse uma política externa coerente, constante, uma política externa de Estado, sem oscilar conforme os humores conjunturais, e funcionasse como fator de aglutinação dos países hispano-sulamericanos, o que ela teria condições de fazer, mas somente respaldada e coligada com o Brasil, o que significava unificar a América do Sul.
[ . . . ]
Outrossim o Brasil continuou a condenar o embargo a que Cuba fora submetida pelos Estados Unidos, desde 1960, em meio de pressões e ameaças contra o regime de Fidel Castro. O presidente Lula, no entanto, visitou Havana, em 2003, onde assinou 12 acordos de cooperação, inclusive para a exploração de Petróleo pela Petrobrás, e rejeitou as pressões internacionais para que intercedesse pela liberdade de presos políticos em Cuba. “Não é boa política um chefe de Estado se meter em assuntos internos de outro país. Vou tratar dos interesses do Brasil. Não vou dar palpite em política interna de outro país”, afirmou Lula no México.[56] Posteriormente, ele apelou para que Castro entendesse que o “Brasil pode ajudar a construir o processo democrático em Cuba”, e reiterou a condenação do embargo imposto há mais de 40 anos pelos Estados Unidos, dizendo: “Temos muito a fazer pela democracia em Cuba. Temos que ajudar na luta contra o embargo (econômico imposto pelos norte-americanos há quatro décadas). O Brasil tem uma chance de ajudar a dar normalidade nas relações de Cuba.”[57] A questão do regime político em Cuba era o que mais dificultava sua aproximação, conforme desejada por Fidel Castro, devido à “cláusula democrática”.
[ . . . ]
Indagado sobre a razão de tal iniciativa, o chanceler Celso Amorim explicou que o Haiti era um país latino, com as mesmas raízes culturais do Brasil e não lhe interessava vê-lo tornar-se um narco-Estado. O que o Brasil procurou, no entanto, foi dar uma demonstração de que se dispunha a exercer um proeminente papel internacional, pelo menos no âmbito do hemisfério, e a vigorar sua posição de candidato a uma vaga permanente no Conselho de Segurança da ONU. Esta questão, a pretendida vaga no Conselho de Segurança da ONU, era que alimentava um clima de desconfiança e fricções entre o Brasil e a Argentina, reacendendo uma rivalidade residual que não fazia qualquer sentido. Em primeiro lugar, não havia qualquer possibilidade imediata de uma reforma da ONU, apesar de que fosse necessária, pois os cinco membros permanentes, principalmente os Estados Unidos não se dispunham certamente a dar o mesmo poder de veto a outros países. Em segundo lugar, avaliando o peso específico, tanto econômico quanto político e estratégico, se a América Latina viesse a ter dois representantes no Conselho de Segurança da ONU, um seria, forçosamente, o Brasil, dado o seu status de potência regional que continuava a insistir na obtenção de uma vaga (prometida aliás pelo presidente Franklin D. Roosevelt ao presidente Getúlio Vargas, devido à sua participação na Segunda Guerra Mundial), com o objetivo de denunciar o congelamento do poder mundial, sua estratificação, favorecendo apenas cinco potências, que detinham capacidade nuclear.
[ . . . ]
O que ao Brasil convinha, assim como à Argentina, era conduzir, de maneira realista, a consolidação do Mercosul e a formação da Comunidade Sul-Americana de Nações como um sistema econômico e político unificado, dentro de um sistema mundial, fortemente competitivo e violento, em que os Estados Unidos tratavam de concentrar e congelar o poder mundial. O processo de globalização sempre significou o crescente domínio das mega-corporações americanas, o esforço de modelar um novo tipo de Império, com a transformação dos exércitos dos países neo-colonizados em forças de polícia, para defender os interesses do capital financeiro e a dolarização de suas economias. Não obstante, o sistema mundial tendia a evoluir para a multipolaridade, apesar da preeminência conjuntural dos Estados Unidos. E nem o Brasil nem a Argentina deviam considerar essa preeminência como definitiva e aceitar o destino de províncias avançadas do grande Império. A previsão do banco Goldman Sachs era a de que, por volta do ano 2025, as economias do grupo conhecido como BRIC (Brasil, Rússia, Índia e China, juntas, representariam mais de metade da economia do G6, formado por Estados Unidos, Japão, Grã-Bretanha, França, Alemanha e Itália, tendendo a suplantá-la até o ano 2050. [60]
[ . . . ]
Tornava-se necessário, portanto, criar um quadro institucional, um organismo mais amplo, para abarcar e agregar todas as nações da América do Sul que não participam plenamente del Mercosul, com o objetivo de promover a realização de vários projetos de integração, não só econômica e comercial, mas também de comunicação, infra-estrutura, transporte, energética, educacional, cultural, científica e tecnológica. A celebração do Tratado Constitutivo da União de Nações Sul-americanas (UNASUL) foi um fato de grande significação histórica. A UNASUL passou a ter uma personalidade jurídica, com a forma de uma organização internacional, com um Conselho de Chefes de Estado e de Governo, um Conselho de Ministros de Relações Exteriores e um Conselho de Delegados. Constitui um avanço no sentido da coordenação de políticas. E dentro desse marco institucional deve concretizar-se o projeto do Banco do Sul e do gasoduto desde Venezuela, passando pelo Brasil, até a Argentina. Dificuldades, divergências, contradições há e sempre haverá, em virtude da enorme assimetria que existe entre os países da América do Sul, principalmente entre o Brasil e seus vizinhos. Não há, porém, qualquer perspectiva para os países pequenos se não se unirem e formarem um amplo espaço econômico comum, de modo a alcançarem melhor inserção nacional.

O Brasil constituiu, por si só, um enorme espaço econômico, não obstante a assimetria existente entre os 26 Estados que o compõem. Adquire um peso internacional maior. Maior, porém, seria o peso da América do Sul integrada. Composta por doze Estados, dentro de um espaço contíguo, possuía, em 2007, uma população total de 360 milhões de habitantes, cerca de 67% de toda a América Latina e o equivalente a 6% da população mundial (6.706.993.152 – 2008 est.), com integração lingüística, pois imensa maioria falava português ou espanhol, e detinha uma das maiores reservas de água doce e biodiversidade do planeta, além de imensas riquezas em recursos minerais, pesca e agricultura. E não apenas sua população era maior que a dos Estados Unidos (303.027.571, est. 2008). Seu território, cerca de 17 milhões de quilômetros quadrados, era o dobro do território americano, com 9.631.418 quilômetros quadrados. Em tais circunstâncias, a União de Nações Sul-Americanas, uma vez politicamente unificada, com um PIB da ordem US$ 3,5 trilhões (para o qual o Brasil concorria com US$ 1,849 trilhão (est. 007)[62], pode representar extraordinária força econômica e política, como demonstrada em 2008 na crise desencadeada pela tentativa separatista de Santa Cruz de la Sierra e demais departamentos da Media Luna da Bolívia. Evidenciou-se assim sua capacidade de influenciar e obter importantes resultados no sistema internacional, em que prevalecerão os grandes blocos, constituídos pelos Estados Unidos, União Européia, Rússia, China e Índia.

* Texto para o seminário sobre “A política exterior do Brasil em sua própria visão e na dos parceiros”. Consulado-Geral do Brasil em Munique, 7 de novembro de 2008. * Luiz Alberto Moniz Bandeira é cientista político, professor titular de história da política exterior do Brasil, na Universidade de Brasília (aposentado) e autor de mais de 20 obras, entre as quais Formação do Império Americano (Da guerra contra a Espanha à guerra no Iraque), pela qual recebeu o Troféu Juca Pato, eleito pela União Brasileira de Escritores (UBE) Intelectual do Ano 2005.
[1] GRAMSCI, Antonio – Maquiavel, a Política e o Estado Moderno, 2a. ed., Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1976, p. 191.
[2] DEUTSCH, Karl W. – "On the Concepts of Politics and Power", in Farrel, John C. & Smith, Asa P. (editors) – Theory and Reality in International Relations, New York – London, Columbia University Press, 1967, p. 52-54.
[3] http://www2.petrobras.com.br/Petrobras/
[4] Ibid.
[5] https://www.cia.gov/library/publications/the-world-factbook/geos/uk.html
[6] KISSINGER, Henry. Does America Need a Foreign Policy. Toward a Diplomacy for 21st Century. Nova York: Simon and Schuster, 2001, pp. 159-160.
[7] “Brazil saw itself organizing Latin America while the United States performed the same task in the North America, the two enterprises to work in harmony through frequent exchanges aimed at articulating a common set of purposes.” Id., ibid., p. 159
[8] Id., ibid., p. 159.
[9] “Exposição aos estagiários da Escola Superior de Guerra”. Washington, 22.06.1974; “Exposição aos estagiários da Escola Superior de Guerra”. Washington, 17.06.1975, in Araújo Castro, J. A. – Araújo Castro (Coletânea de Discursos). Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1982, pp. 283-284 e 315-316..
[10] “Exposição aos estagiários da Escola Superior de Guerra”. Washington, 22.06.1974; “Exposição aos estagiários da Escola Superior de Guerra”. Washington, 17.06.1975, in Araújo Castro, 1982, pp. 283-284 e 315-316.
[11] Despacho nº 17, M. Maillefer a Drouyn de Lhuys, Montevidéu, 05.03.1854, in Revista Histórica nº 51, 449.
[12] “Amerika ist somit das Land der Zukunft, in welchem sich in vor uns liegenden Zeiten, etwa im Streite von Nord- und Südamerika, die weltgeschichtliche Wichtigkeit offenbaren soll”. Hegel, Band I, 1994, p.208.
[13] Id. Ibid., p.208.
[14] Chevalier, Michel. Lettres sur l'Amérique du Nord. Librairie de Charles Gosselin et Cie, 1837. 2 vol.
[15] PINHEIRO GUIMARÃES, Samuel. Quinhentos anos de periferia. Rio de Janeiro-Porto Alegre: Editora Contraponto – Editora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 1ª. edição, 1999, p. 146.
[16] Moniz Bandeira, 3ª. Edição, 1998, pp. 21-87.
[17] Teixeira Soares, 1972, p. 213. Santos, 2002, pp. 75-86, 99-109.
[18] Vide Teixeira Soares, 1971, pp. 17-21.
[19] Cervo & Bueno, 2ª edição, 2002, pp. 87-107
[20] Teixeira Soares, 1971, pp. 17-21.
[21] Dom Pedro II, 1956, p. 62.
[22] Ofício de Miguel Maria Lisboa a Benevenuto Augusto de Magalhães Taques, Washington, 20/10/1961. Taques a Lisboa, 07/11/1861. Missões Diplomáticas Brasileiras. Legações Imperiais na Europa. Arquivo Histórico do Itamaraty 233/3/11 e 235/2/1.
[23] Telegrama de Rio Branco a Joaquim Nabuco, Embajador de Brasil em Washington. 10.11.1908. Ibid.
[24] Entrevista do Embaixador José Joaquim de Lima e Silva Moniz de Aragão, que foi secretário particular do Barão do Rio Branco. Rio de Janeiro, 1971.
[25] Telegrama de Rio Branco a la Embajada de Brasil en Washington, 16.6.1910. Telegramas expedidos – AHI – 235/4/1.
[26] Vide Moniz Bandeira, Luiz Alberto. Brasil, Argentina e Estados Unidos: conflito e integração na América do Sul. Rio de Janeiro: Editora Revan, 1993.
[27] Relatório Reservado sobre a Política Exterior do Brasil e dos países da América do Sul. Organizado por ordem de Sua Excia. o senhor Ministro de Estado das Relações Exteriores pelo 1° official da Secretaria de Estados, Ronald de Carvalho (Do Gabinete do Ministro). Rio de Janeiro, 1927. Arquivo do Autor.
[28] Carta de Oswaldo Aranha a Getúlio Vargas, Washington, 9.4.1935. AGV – doc.18, vol. 18.
[29] Vargas, 1995, p. 454.
[30] Discurso, in Correio da Manhã, 22/06/1958, última página. Vide Moniz Bandeira, 2ª. Edição, 1978, pp. 382-382
[31] Ricupero, janeiro/março, 1984, Senado Federal, p. 63.
[32] Moniz Bandeira, 2003, 2ª. Edição, p. 458. Moniz Bandeira, 2004, pp. 164-165.
[33] Entrevista do Embaixador Samuel Pinheiro Guimarães a Valor Econômico, 2.2.2001.
[34] Ibid.
[35] Cardoso, Fernando Henrique - “O Brasil e uma nova América do Sul”, Valor Econômico, 30 de agosto de 2000.
[36] Ibid.
[37] Kissinger, Henry. Does America Needs a Foreign Policy? New York: Simon & Schuster, 2001, p. 152 - 163.
[38] Em abril de 1998, os quatro estados do Mercosul celebraram os estados da Comunidade Andina de Nações (CAN) um acordo-quadro que previa a criação de uma zona de livre comércio entre os dois blocos a partir de janeiro de 2000. O intercâmbio com o CAN, no ano 2000, alcançou um montante da ordem de US$ 5,5 milhões, 29% maior do que em 1999, sendo os fluxos de comércio mais importantes os registrados entre Brasil e Venezuela e Brasil e Colômbia[38]. Dados da Confederação Nacional da Indústria (CNI), Brasília.
[39] Cardoso, Fernando Henrique - “O Brasil e uma nova América do Sul”, Valor Econômico, 30 de agosto de 2000.
[40] Discurso do Presidente Fernando Henrique Cardoso, na Reunido de Cúpula do MERCOSUR,na ocasião do da Reunião do Conselho do Mercado Comum, Assunção, 22 de junho de 2001.
[41] Rohter, Larry – “South American Trade Bloc Called Mercosur Under Siege”, in The New York Times, New York, 24.3.2001.
[42] Kissinger, Henry. Does America Needs a Foreign Policy? New York: Simon & Schuster, 2001, p. 152 - 163.
[43] Id., ibid., p. 152.
[44] Id., ibid., p. 163.
[45] Cervo, Amado Luiz & Bueno, Clodoaldo. História da Política Exterior do Brasil. Brasília: Instituto Brasileiro de Relações Internacionais-Editora da Universidade de Brasília, 2002, pp. 486-487.
[46] O general Lino César Oviedo Silva fez rápida carreira no Exército, desde a queda de Stroessener em 1989. Naquela época, era simples coronel e foi ajudante do general Andrés Rodríguez, comandante do Primeiro Corpo do Exército. Em 1992, converteu-se em chefe da campanha da candidatura de Juan Carlos Wasmosy e influiu para que ele derrotasse Luiz Maria Argaña. Certa vez declarou: “Fuerzas Armadas y Partido Colorado cogobernaremos siempre, chille quien chille, llore quien llore, moleste a quien moleste”. E em 1993 começou sua carreira política.
[47] A United Technologies produzia o poderoso helicóptero UH-60L Black Hawk, o Falcão Negro, e a Bell Textron procurava vender helicóptero UH-1H Huey. Ambas corporações investiram nas campanhas eleitorais dos EUA. Constava que, nas campanhas de 1996 e 1998, a Bell Textron deu uma contribuição de US$ 551,816 ao Partido Republicano e US$ 364,420 ao Partido Democrata; a United Technologies contribuiu com US$ 362,340 para o Partido Republicano e US$ 347,200 dólares para o Partido Democrata.
[48] La Nación, Buenos Aires, 22.6.2001.
[49] El Universal, Caracas, 08.0, 2002.
[50] Wayne Madsen, antigo agente do serviço de inteligência da marinha norte-americana, revelou ao jornal inglês The Guardian que, desde junho de 2001, os EUA estavam a considerar a possibilidade de derrubar Chávez, e seus navios, estacionados no Caribe, entre 11 e 12 de abril, não apenas intervieram nas comunicações das embaixadas de Cuba, Líbia, Irã e Iraque, como permaneceram em estado de alerta, com o objetivo de evacuar os cidadãos americanos, se necessário. Campbell, Duncan – “American navy 'helped Venezuelan coup'”, The Guardian, Londres, 29.04.2002. O presidente Hugo Chávez revelou a uma comitiva de deputados brasileiros, chefiada pelo deputado Aldo Rebelo (PCdoB/SP), presidente da Comissão de Relações Exteriores da Câmara, que o governo venezuelano tem registros da presença de oficiais do exercito americano no Forte Tiúna no dia do golpe. ''Ele tem tudo anotado, a que horas os adidos militares americanos saíram dos quartéis e a que horas chegaram ao forte'', disse o deputado Aldo Rebelo. “Chávez volta a acusar EUA” , Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 01.05.2002.
[51] Na mesma sexta-feira, 12 de abril, os advogados do Departamento de Estado, estudando a constituição da Venezuela, notaram que a renúncia do presidente da República não era válida até que fosse aceita pela Assembléia Nacional, que tinha o poder de instalar um novo chefe de governo.
[52] O Art. 20 da Carta Democrática Interamericana dispõe que, “caso num Estado membro ocorra uma alteração da ordem constitucional que afete gravemente sua ordem democrática, qualquer Estado membro ou o Secretário-Geral poderá solicitar a convocação imediata do Conselho Permanente para realizar uma avaliação coletiva da situação e adotar as decisões que julgar conveniente”.
[53] Consejo Permanente de la Organización de los Estados Americanos, Acta de la Sesión Extraordinaria celebrada el 21 de Enero de 2000. A OEA, mediante a resolução AG/RES. 1080 (XXI-O/91), estabelecera um mecanismo para ajudar a restabelecer a democracia representativa onde ela sofresse uma interrupção. Essa resolução foi aprovada na quinta sessão plenária da OEA, ocorrida em 5 de junho de 1991.
[54] Marquis, Christopher – “U.S. Cautioned Leader of Plot Against Chávez” , The New York Times, 17.04.2002
[55] Os presidentes, Néstor Kirchner, da Argentina; Lucio Gutiérrez Equador; Nicanor Duarte, Paraguai; e Jorge Batlle, do Uruguai, não participaram da reunião por diversos motivos, mas deixaram claro seu apoio à decisão.
[56] Fraga, Plínio. “Não vou palpitar na política de Cuba, diz Lula. Folha de São Paulo, 26/09/2003
[57] Gielow, Igor Lula diz que ajudará Cuba a ter democracia. Folha de S. Paulo, 09/04/2005
[58] Guimarães, Samuel Pinheiro. “O papel político internacional do Mercosul”. 12 de julho de 2004.
[59] Ibid.
[60] The Goldman Sachs Group, Inc – Global Economics Paper No. 99: Dreaming with BRICs: The Path to 2050
[61] Entrevista ao Autor, Buenos Aires, 1975.
[62] De acordo com o método da paridade do poder de compra.

Leiam na íntegra em http://www.espacoacademico.com.br/091/91bandeira.htm acesso em 8 Dez. 2008.