O verdadeiro patriotismo é o que concilia a pátria com a humanidade.
Joaquim Nabuco, 1849-1910

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terça-feira, 24 de julho de 2007

Lopes, LC - Democracia e os limites da opiniao

http://www.cartamaior.com.br/templates/analiseMostrar.cfm?coluna_id=3679 acesso em 24 jul. 2007.

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DEBATE ABERTO
Democracia e os limites da opinião
A existência democrática de múltiplas opiniões não impede a manipulação.
Simplesmente, permite o desenvolvimento do antídoto para o veneno,
o que nem sempre ocorre a tempo de se evitar tragédias.
Luís Carlos Lopes

Uma das características de origem da idéia de democracia é a possibilidade de se construir e divulgar opiniões. As tiranias não conseguem conviver com visões distintas sobre os mesmos problemas. Nelas, é claramente proibido discordar das verdades oficiais. Por isto, não existe oposição organizada, a não ser na clandestinidade ou como farsa oficial. Nos regimes tirânicos, mesmo entre os amigos, não são aceitáveis visões que saiam do diapasão do poder. Deixam de ser amigos, no momento em que discordam, mesmo que seja no intuito de manter a ordem e defender o regime.

Os regimes tirânicos se caracterizaram pelo seqüestro da palavra dita e debatida. A violência substitui a discussão. A verdade do poder está acima de quaisquer evidências, fatos ou opiniões. Não se pode discordar, a não ser nos limites do consentido. Quando as tiranias entram em crise, a palavra ressurge das cinzas, dita, escrita e expressa dos modos mais diversos. As tiranias, bem como as democracias, têm gradações, momentos de ápice e de crise. É possível ver o que está passando, fazendo o diagnóstico do uso da palavra. O silêncio e a censura são indicadores de práticas tirânicas radicais.

Nestas, há uma só voz e só uma verdade. Foi e é assim em toda parte. O barômetro da democracia e da tirania tem no uso da palavra a sua escala de medida.

É bem verdade que na maioria das democracias a discordância sempre sofre algum nível de demonização. A livre-opinião tem muitas dificuldades de se impor como uma decorrência da discussão aberta e desarmada de idéias. Isto porque a democracia perfeita é um mito. Este regime político é uma forma de governo, que pode ter conteúdos bastante variados. Em nome da democracia, tal como se conhece na história do passado e bem recente, foram e são cometidos crimes similares aos perpetrados pelas tiranias da mesma época. A luta entre o princípio democrático e o tirânico não raro é um disfarce de problemas profundos sob os quais não se desejam que se formem opiniões mais detalhadas.

A manipulação da opinião é clara nas tiranias. Nas democracias, ela precisa se travestir. Isto porque é um contra-senso lógico manipular informações e opiniões, no lugar de ouvir e polemizar com o contraditório, até se chegar a um consenso ou a algo próximo disto. Para alguém autoritário, é mais simples baixar a espada do poder ou da lei, ferindo a verdade dos fatos, das evidências ou das opiniões contrárias. Como diz Philippe Breton, a democracia é também uma questão de competência, de saber jogar com as diferenças. Ser democrático implica em reconhecer sua própria falibilidade e em ser capaz de ouvir a todos sem preconceitos. A democracia é produto da vontade humana, não é natural e não existe sem que pessoas de carne e osso a reivindiquem, muito além do que simples artifícios de retórica.

As opiniões são construções do pensamento, tentativas de se explicar o que sucedeu ou o que sucederá. São representações da realidade objetiva, não podem ser confundidas com a mesma. Compreender o que se
passa ou o que se passará não é tarefa fácil e o mundo é sempre visto por um prisma de interesses. Estes são partes dos elementos que constroem a opinião. É possível ver nestas uma dupla representação: uma objetiva relativa ao que se está querendo comunicar; outra subjetiva referente aos interesses que levam ver o problema de modo X ou Y. É preciso cautela para que se compreenda a dupla face das opiniões.

Os sensos comuns retro-alimentados pelas mídias falam, sem provar, da existência da opinião pública, um conceito ligado à publicidade e à idéia de uma sociedade sem oscilações e diferenças profundas. É verdadeiro que se possa alcançar um consenso relativo sobre uma marca de cerveja. É muito mais difícil provar que na mesma sociedade tudo seja tratado como um produto consumido de modo hegemônico. Por isso rejeita-se a idéia da existência de uma opinião pública. O que existiriam seriam múltiplas opiniões comuns e especializadas. As primeiras seriam as crenças hegemônicas e consensuais próprias de determinados segmentos sociais e regionais. As segundas seriam as proferidas e sustentadas pelos profissionais da opinião, tais como os jornalistas, juízes, políticos, professores e outros intelectuais.

A opinião comum é a que está nas ruas, construída com fragmentos de informações e suscetível a receber influxos de fontes externas, sobretudo midiáticas. Ela é múltipla, variável e dependente do que a retro-alimenta do ponto de vista social e político. Por mais que existam manipulações, grandes contingentes populacionais desenvolvem seus próprios pontos de vista, afrontando o que lhes dizem que é correto e indiscutível. Nem sempre é possível saber, com exatidão, como as pessoas realmente pensam. Isto porque a capacidade de interação entre o que recebem e o que julgam não é facilmente completado no circuito comunicacional indireto de nosso tempo. Funcionam mil canais de difusão e pouquíssimos de recepção.

A opinião especializada reflete um saber e um certo modo de ver as coisas que se destaca pela qualidade de suas fontes de informação e de discussão. A partir desta, fica mais fácil manipular ou contraditar as certezas dominantes. Quando um jornalista mais sério escreve, ele está lutando em duas frentes: combate seus iguais que pensam diferente de suas propostas; tenta convencer as pessoas mais comuns de que a sua opinião deve ser validada. É lógico que existem os que também perguntam aos seus leitores o que eles pensam, afastando-se da retórica habitual. Há os que, simplesmente, reproduzem os sensos comuns, falando para agradar, e não para provocar o debate. Outros manipulam conscientemente para convencer seus auditórios com suas retóricas.

Existe democracia, se o debate é feito. Sem ele, a tirania tem o seu caminho aberto. Mas este debate deve seguir regras e se nutrir de uma ética que o sustente. Debater não é falar o que venha a cabeça ou simplesmente matraquear chavões e lugares comuns. Significa aguçar a capacidade de análise e falar (ou escrever) de modo responsável. Como ninguém sabe de tudo, é preciso cuidado com conclusões precipitadas sobre assuntos complexos. É necessário compulsar fontes, verificar informações antes de concluir. O debate parlamentar, hoje possível de ser acompanhado na televisão e na Internet, é rico em exemplos de alocuções dos mais diversos gêneros, que revelam as diferenças de nível dos parlamentares, como também suas posições no cenário político e social do país. Não raro, falas viram gags, algumas caem no You Tube, sem serem sido concebidas com este fim.

A existência democrática de múltiplas opiniões não impede a manipulação. Simplesmente, permite o desenvolvimento do antídoto para o veneno, o que nem sempre ocorre a tempo de se evitar tragédias. Os adeptos da tirania, em todas as suas formas conhecidas ou a serem inventadas, atacam a democracia lembrando que com ela se reforçam a retórica e a demagogia. Eles 'esquecem' que estes males florescem igualmente na tirania, sem que nada possa se fazer, mesmo que se queira. A democracia reduz-se ou amplia-se na medida exata em que a opinião possa ser exercitada em quantidade e qualidade suficiente.

Debater significa esgrimir com opiniões, num verdadeiro jogo de linguagem, em que devem ser respeitadas as diferenças e os múltiplos enfoques. Entretanto, a opinião não pode ser construída contra os fatos sobejamente conhecidos. Elas não substituem o que já se sabe e o que já se passou. Em um exemplo recorrente, não se pode negar que houve o holocausto e que seis milhões de judeus foram sacrificados por decisão da Alemanha nazista e de seus aliados. Junto com eles foram exterminados cerca de dois milhões de ciganos, homossexuais e opositores políticos. Negar estes fatos é inaceitável, impudico e merece a mais profunda reprovação. Na Alemanha de hoje isto é crime grave, não sendo visto como um simples delito de opinião. Mentir sobre fatos conhecidos, tergiversar sobre o sofrimento humano consiste em somar-se aos condenados de Nuremberg.

Infelizmente, tal tipo de alocução ainda é muito comum. Há gente que tem a coragem de negar inúmeros fatos bem documentados ou que foram expostos a milhões pelos modernos meios de comunicação. Este comportamento continua a se repetir, sobretudo em países de tradição autoritária, onde é usual reescrever a história de acordo com os interesses do momento. Dizem estes apóstatas que têm o direito à livre expressão de suas opiniões, confundindo este belíssimo direito com o falseamento daquilo sobre o que não resta a menor dúvida. O leitor deve estar pensando em inúmeros exemplos. O autor não precisa enumerá-los, basta ver os telejornais, ler a grande imprensa e prestar atenção no discurso de alguns políticos.

* Luís Carlos Lopes é professor do Instituto de Artes e Comunicação Social da Universidade Federal Fluminese (UFF).

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