O verdadeiro patriotismo é o que concilia a pátria com a humanidade.
Joaquim Nabuco, 1849-1910

terça-feira, 4 de novembro de 2008

O declínio da hegemonia dos EUA e os desafios para um projeto de esquerda

Deu na Agência Carta Maior:

A hegemonia dos EUA na América Latina se desvanece como decorrência do fracasso das ditaduras militares e das políticas neoliberais aplicadas por governos democráticos. O neoliberalismo desmoralizou-se, o Estado voltou assumir função de organização do sistema produtivo. Mas a esquerda segue sem uma plataforma. "Grande parte da esquerda, sem conhecer o pensamento de Marx, continua a pensar conforme os parâmetros gerados ao tempo de Stalin", avalia o cientista político Luiz Alberto Moniz Bandeira.

Redação - Carta Maior

Ganhe quem ganhar as eleições desta terça-feira, o novo presidente dos EUA tomará posse em 20 de janeiro de 2009, em meio a uma crise mundial que alguns avaliam como igual, ou pior que a de 1929. Daquela emergiu a liderança transformadora de Franklin Roosevelt nos EUA; mas também houve Hitler, na Alemanha e ambos se viabilizaram através de uma Guerra Mundial.

A única certeza, desta vez, é que não será uma simples troca de guarda no trono do império. Os EUA constituem o epicentro de um colapso que marca o fim da supremacia dos mercados financeiros desregulados em todo o planeta. A implosão dessa engrenagem liberou massas de instabilidade descomunais. Dia a dia sua propagação avança em movimentos assimétricos, sem que se possa antever ainda, com toda clareza, qual será a real extensão dos abalos econômicos, bem como os desdobramentos políticos que ela trará.

Um marcador inaugural do ciclo que agora se fecha poderia ser 11 de setembro de 1973.

O local, o Chile, de Salvador Allende. A parteira da história: as baionetas, metralhadoras e caças aéreos mobilizados para atacar La Moneda, o palácio presidencial onde o médico socialista Salvador Allende morreria. Pelas mãos da Junta militar liderada pelo General Augusto Pinochet, o neoliberalismo radical de Hayek e Friedman deixaria os laboratórios de economia de Chicago para voltar à história. O ensaio chileno antecederia em quase uma década as políticas consagradas pelo Consenso de Washington que agora desabam ruidosamente.

Depois de um ciclo que começou em sangue, e termina agora em desastre econômico planetário, qual será o passo seguinte da história? Que lições o passado oferece ao futuro para evitar a repetição de erros, ilusões e tragédias? Em que medida a crise amplia ou restringe o espaço de autonomia política dos povos latino-americanos? Até que ponto ela enfraquece a capacidade de intervenção norte-americana, inviabilizando novos golpes e ações violentas como a que derrubou Allende? Quais os trunfos, e limites, para um avanço das agendas progressistas na região?

Para responder a essas e outras urgências, Carta Maior entrevistou o cientista político Luiz Alberto Moniz Bandeira. Professor titular de História da Política Exterior do Brasil na Universidade de Brasília (UnB), hoje aposentado, Moniz Bandeira é autor de mais de 20 livros que o credenciam como uma voz obrigatória nesse momento. O título de sua obra mais recente, lançada simultaneamente no Brasil e no Chile, sintetiza essa pertinência: “Fórmula para o caos – A derrubada de Salvador Allende (1970-1973)”.

Da Alemanha onde mora há treze anos, tendo sido professor visitante nas Universidades de Heidelberg e Colônia, Moniz Bandeira respondeu por email às perguntas de Carta Maior. Suas palavras estão marcadas pela ênfase nas diferenças entre a América Latina de Allende e a atual de Lula, Chávez e Morales. Ainda que anteveja um declínio do intervencionismo norte-americano, por conta da crise em marcha, o cientista lembra que a CIA não deixou de operar na região. Ele não vê risco de a crise enfraquecer as lideranças regionais, transformando-as potencialmente em novos “Allendes”, mas insiste que não há espaço para erros de avaliação estratégica. A natureza e a extensão das transformações regionais, no seu entender, obedece a limites impostos pelo grau de desenvolvimento do capitalismo na realidade latino-americana.

A seguir entrevista de Moniz Bandeira à Carta Maior:
Carta Maior - O título do seu livro mais recente, “Fórmula para o Caos – A derrubada de Salvador Allende, 1970 1973”, sinaliza desde logo a interferência de forças desestabilizadoras na trajetória das lutas sociais na América Latina. Mas sua análise tampouco hesita em apontar equívocos nos projetos abraçados pelos partidos e organizações progressistas da região. Poderia ter sido diferente no Chile, se a esquerda tivesse conduzido o processo com maior flexibilidade política? Moniz Bandeira – No prefácio à sua obra "Crítica à Economia Política" (Zur Kritik der Politschen Ökonomie), Karl Marx sustentou, como conclusão de suas pesquisas, que uma formação social nunca desmorona sem que as forças produtivas dentro dela estejam suficientemente desenvolvidas, e que as novas relações de produção superiores jamais aparecem, antes de que as condições materiais de sua existência sejam incubadas nas entranhas da própria sociedade antiga. Este não era o caso do Chile, um país economicamente muito mais atrasado que o Brasil, inserido no mercado mundial capitalista, do qual pesadamente dependia para suas exportações de cobre e até mesmo para a importação de alimentos. E Marx jamais concebeu o socialismo como via de desenvolvimento ou modelo alternativo para o capitalismo, senão como conseqüência da expansão das forças produtivas do capitalismo.

O próprio Lenin acentuou, por volta de 1905, que o proletariado russo sofria mais por causa do atraso do capitalismo do que pelo seu desenvolvimento. E a Rússia possuía um parque industrial, com 4 milhões de operários, quando correu a revolução de 1917. Não obstante, o presidente Salvador Allende tentou mudar o modo de produção no Chile, isto é, implantar o socialismo em um país imensamente mais atrasado que a Rússia em 1917, sem que houvesse condições econômicas e sociais, bem como condições externas, alinhando-se com Cuba e a União Soviética, dentro do contexto da Guerra Fria. No meu livro "Fórmula para o Caos" analiso todos esses problemas, tanto do ponto de vista teórico quanto empírico, com base nos documentos da época.
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CM - Em que medida o componente novo da integração sul-americana (ainda que engatinhe em fraldas) amplia a margem de manobra dos governantes hoje, em relação ao isolamento vivido por Allende nos anos 70? O golpe contra Allende seria viável nas condições atuais da geopolítica sul-americana? MB – A integração sul-americana não engatinha em fraldas. Toda integração é demorada e se processa em meio a contradições e divergências, como, por exemplo, ainda existem dentro da União Européia. Mas o golpe contra Allende seria viável, mesmo atualmente, porque o esforço de socialização, com a estatização acelerada de empresas e a ocupação de terras como aconteceu no Chile, um país relativamente atrasado, o que ainda é, desorganizaria todo o aparelho produtivo e ele não teria condições de sustentar-se no governo. Porém, um golpe militar, com a implantação de uma ditadura, como aconteceu em 1973, é que decerto não ocorreria, dados os acertos internacionais, que instituíram a Cláusula Democrática, na Carta da OEA, aprovada em 2001.

Esta cláusula foi argüida pelo Brasil para impedir o reconhecimento do golpe contra Chávez, em 2002, isolando os Estados Unidos, que terminaram capitulando. Quanto a Chávez e Morales, ao contrário de Salvador Allende e da Unidade Popular, eles não têm nenhum projeto definido, visando à mudança do modo de produção, e ainda assim as iniciativas que tomam defrontam-se com enorme resistência interna, tanto na Venezuela quanto na Bolívia. Ambos os países estão politicamente fraturados e não se pode dizer que a situação, sobretudo na Bolívia, seja estável.
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CM - Em que medida a mudança no cenário econômico mundial, poderá implodir o ensaio de “estabilidade” progressista na geopolítica da região: assim como os conservadores de Washington dizem “agora somos todos keynesianos”, o destino dos governantes progressistas na América do Sul será dizer “agora somos todos Allendes”? MB – A explosão da bolha financeira estava prevista há muito tempo. A alta do preço do petróleo, bem como a valorização do euro evidenciavam a profunda crise que solapa a economia americana. No prefácio à segunda edição de meu livro "Formação do Império Americano", lançada em meados de 2006, escrevi que “a bolha financeira dos Estados Unidos, assim inflada, vai estourar, mais dia menos dia”. De fato, em 2007, explodiu, quando, no 1º semestre do ano, grandes corretoras, como Merrill Lynch e Lehman Brothers, suspenderam a venda de colaterais e, em julho do mesmo ano, bancos europeus registraram prejuízos com contratos baseados em hipotecas sub-prime. Foi a inadimplência de devedores hipotecários que detonou o colapso financeiro, atingindo empréstimos de empresas, cartões de crédito, etc.

A atual valorização (do dólar) se deve ao fato de que as corporações multinacionais estão vendendo suas posições nas bolsas de valores, seus ativos no exterior, a fim de remeter dólares para cobrir os buracos nas suas matrizes, seja nos Estados Unidos ou na Europa. A partir de outubro, parte substancial dos recursos, que entrou nos Estados Unidos, proveio do socorro por fundos soberanos da Ásia e do Oriente Médio, que adquirem títulos conversíveis em ações de bancos americanos, como o Citigroup, cujas ações ordinárias foram compradas pelo fundo soberano de Abu Dhabi por US$ 7,5 bilhões. Também foram incrementadas as operações de resgate por parte dos bancos centrais para evitar que os bancos pusessem à venda ativos podres, o que precipitaria a débâcle.

Se todos os conservadores de Washington dizem “agora somos todos keynesianos, i. e., passaram a reconhecer que o Estado deve ser a instância superior de comando e organização do sistema produtivo, os governantes, considerados progressistas, na América do Sul não podem dizer “agora somos todos Allendes”. Allende viveu sob o impacto da Revolução Cubana e imaginou que podia implantar o socialismo no Chile, um país economicamente dependente, e contar com o apoio da União Soviética, sem saber que ela já estava enfrentando severa crise econômica.

Na verdade, a União Soviética buscava um entendimento com o Ocidente, consulado com o Tratado Quatripartite, que resolveu a questão de Berlim e das duas Alemanhas. A época atual é outra, bem distinta da existente nos anos 1960 e 1970. Allende foi um grande homem, um idealista, que tinha um projeto bem definido. Mas é o passado de uma ilusão. E tanto Evo Morales quanto Hugo Chávez surgiram em outras circunstâncias históricas e exprimem as idiossincrasias sociais e políticas de seus respectivos países, que não são as mesmas do Chile. E, de qualquer forma, nenhum deles tentou mudar completamente o modo de produção, o que é impossível em países atrasados, isoladamente, pois estão inseridos dentro de uma economia mundial de mercado, regida pelas leis do capitalismo. O capitalismo foi o único modo de produção que teve capacidade de expandir-se mundialmente e abrange não apenas as potências industriais, mas também todos os países periféricos, em desenvolvimento ou atrasados. É necessário que a esquerda volte a ler Marx, Rosa Luxemburgo e abandone os estereótipos gerados pelo stalinismo.
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CM - Quais seriam os trunfos acumulados pelas forças populares hoje que não se encontravam disponíveis nos anos 70 de Allende? MB – A época em que Salvador Allende tentou implantar o socialismo no Chile, com “vino y empanadas”, é muito diversa da atual. O contexto internacional é completamente diverso do existente nos anos 1970. É preciso não esquecer que em apenas alguns meses de 1989, os regimes comunistas na Polônia, Hungria, Tchecoslováquia, Bulgária e Romênia desmoronaram, como pedras de um dominó, em rápida e surpreendente sucessão. Os Estados do Báltico (Lituânia, Letônia e Estónia), que integravam a União Soviética, declararam sua independência.

O Muro de Berlim, monumento da Guerra Fria, do conflito Leste-Oeste mundial, esbarrondou-se, o que possibilitou a reunificação da Alemanha, em 3 de outubro de 1990. A confrontação de poder bipolar, marcada pelo antagonismo ideológico, político e militar, desvaneceu-se, e a própria União Soviética, em 1991, desintegrou-se, confirmando a previsão feita em 1935 por Leon Trotsky, segundo a qual, se não houvesse uma revolução política e não fosse restabelecida a democracia, com plena liberdade dos sindicatos e dos partidos políticos, a restauração da propriedade privada dos meios de produção tornar-se-ia inevitável e a nova classe possuidora, para as quais as condições estavam criadas, encontraria seus servidores entre os burocratas, técnicos e dirigentes, em geral, do Partido Comunista.

A expansão do capitalismo, para a qual as fronteiras do Leste Europeu se reabriram, voltará ao ponto em que fora atalhada, prematuramente, pela tentativa de implantação do socialismo em uma Rússia atrasada. Nela, a renda pública per capita era oito a dez vezes inferior à dos Estados Unidos, com baixa produtividade do trabalho, devido ao pequeno peso específico da indústria na sua economia.
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CM - Que componentes da “fórmula para o caos”, acionados contra Allende em 1973, continuariam presentes na movimentação oposicionista no continente? O bombardeio midiático seria um deles? MB – O bombardeio midiático continua. As agências de notícias e as redes de televisão compõem o aparelho ideológico de que os Estados Unidos se valem para manter seu domínio na América Latina e demonizar todos os que a ele se opõe. E é preciso ressaltar que também a subsecretaria de Diplomacia Pública, do Departamento de Estado, está cooptando professores, jornalistas etc. para que escrevam artigos e tratem de desqualificar todos os que criticam os Estados Unidos, de modo a conter o crescente anti-americanismo que se manifesta na maior parte dos países.
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CM - O partido da Esquerda alemão tem possibilidades de reaglutinar a sociedade com base num novo projeto mudancista? MB – Não sei o que se pode chamar de um projeto mudancista, mas o fato é que o Partido Social-Democrata descaracterizou-se na Alemanha. E este fenômeno reflete as mudanças que ocorreram na sociedade, sobretudo na classe trabalhadora, e o enfraquecimento dos sindicatos, como força política. Isto aconteceu também na Inglaterra, França e em outros países da Europa. E a Linkepartei, o Partido da Esquerda, não tem, por enquanto, a menor possibilidade de galvanizar a sociedade para qualquer projeto, em virtude, sobretudo, do trauma provocado pelo regime existente na chamada República Democrática Alemã, cuja população lutou para integrar-se na República Federal da Alemanha, reunificando o país, em 1990. O percentual da Linkepartei está em torno de 12% a 13%, porque dispõe de maior apoio no Leste. Mas no que era a Alemanha Ocidental seu suporte é muito reduzido. Creio que está entre 4% e 5%, embora este possa a crescer, dependendo da evolução da crise. Mas a longo prazo.

CM - O keynesianismo de Brown e Sarkozy deve ser levados a sério?

MB – As medidas consideradas keynesianas de Brown e Sarkozy foram determinadas pela necessidade, em face da crise financeira. É bom recordar que, segundo Marx e Engels, quando o Estado intervém na economia, não debilita, antes fortalece a propriedade privada, o capitalismo. E os velhos esquemas ideológicos não mais funcionam na Europa, porque não se renovaram, não acompanharam as mudanças ocorridas na sociedade. Grande parte da esquerda ainda imagina um proletariado que não mais existe na realidade, que não é mais o mesmo que nos tempos de Marx ou no início do século XX.

Leiam na íntegra em http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=15349