23.07.07 - BRASIL
A falsa crise do Sistema de Seguridade Social no Brasil (II)
Denise Lobato Gentil *
Adital -
Uma análise financeira do período 1990 - 2005 - Parte II
A legislação infraconstitucional foi desconstruindo os esquemas de gestão administrativa e financeira da seguridade social concebidos em 1988. A Lei 8.212, de 24 de julho de 1991, intitulada Lei Orgânica da Seguridade Social, estabelece no seu artigo 33 (com grifos nossos):
Ao Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) compete arrecadar, fiscalizar, lançar e normatizar o recolhimento das contribuições sociais previstas nas alíneas a, b e c do parágrafo único do art. 11 [contribuições sociais das empresas, incidentes sobre a remuneração paga; dos empregadores domésticos; e dos trabalhadores, incidentes sobre seu salário de contribuição]; e ao Departamento da Receita Federal (DRF) compete arrecadar, fiscalizar, lançar e normatizar o recolhimento das contribuições sociais previstas nas alíneas d e do parágrafo único do art. 11 [contribuições sociais das empresas sobre faturamento e lucro e as incidentes sobre a receita de concursos de prognósticos].
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3) Uma parte significativa dos recursos da seguridade social é desviada de seu orçamento, mas não recebe nenhum tipo de aplicação, o que quer dizer que podem ter ficado retidos na Conta Única do Tesouro. São valores que podem ser identificados nas tabelas 8 a 17 através da coluna "sem identificação de aplicação". Em 2005, por exemplo, R$ 14,5 bilhões de recursos da seguridade não tiveram uso identificável nos relatórios de execução orçamentária e R$ 56,8 bilhões foram aplicados fora da seguridade social. Todos os anos da série de 1995-2005 apresentam esse fenômeno, mas os valores apresentam uma dimensão maior a partir de 2001. A esterilização desses recursos, além de impossibilitar o atendimento de necessidades urgentes por serviços públicos essenciais, significa uma forte contenção de demanda agregada, pois deixam de circular no mercado, contribuindo para reduzir o dinamismo da economia. É mais uma demonstração do forte caráter recessivo da política fiscal, feita com o sacrifício das políticas sociais.[13]3. CONCLUSÕES
A conclusão a que se chega - na verdade mera constatação - pode e deve surpreender a muitos: nem a previdência social brasileira nem o sistema de seguridade social instituído pela Constituição Federal de 1988 são deficitários; são, ao contrário, superavitários, e esse superávit, cuja magnitude é expressiva, vem sendo sistematicamente desviado para outros usos. Essa constatação, no entanto, coloca uma questão relevante para o pesquisador: como e por que foi criada essa aura de crise e urgência em torno a um problema que não é nem crítico nem urgente?
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A permanência dessa política por muitos anos consecutivos faz com que se possa prever, para o futuro, um grande contingente de "sem-previdência", isto é, pessoas com idade superior a 60 anos que necessitarão de gastos assistenciais para seu sustento. Para evitar que essa previsão se confirme, é necessária, desde já, a incorporação dessa população ao mundo dos direitos da cidadania. E isso depende da mudança na atual política econômica, tanto quanto sua permanência posterior no sistema previdenciário está diretamente associada ao padrão de desenvolvimento econômico do futuro, muito mais do que de reformas tópicas ou radicais na área tributária, no código penal ou na legislação previdenciária e trabalhista.REFERÊNCIAS
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Notas:
[9] Dentro do regime público há regimes especiais, como o dos magistrados, congressistas e militares. São regimes especiais porque as regras entre eles não são homogêneas.
[10] É o que deveria ser feito, ou seja, a contribuição patronal da União deveria ser patrocinada pelo orçamento fiscal, como parte dos gastos correntes com pessoal, mas, como será analisado mais à frente, o Tesouro Nacional retira recursos do orçamento da seguridade social para patrocinar o Regime Próprio de Previdência do Servidor da União (RPPS).
[11] Nesses dois anos, embora a seguridade social tenha produzido receitas maiores que despesas (superávit), a desvinculação das receitas (DRU) foi inferior a 20% (17,8% em 1995 e 9,2% em 1998). É exatamente isso que indicam os valores nulos dos anos de 1995 e 1998 na última linha da Tabela 3. Nos outros anos, depois de retiradas as desvinculações, ainda sobraram recursos, que se dirigiram para outras aplicações do orçamento fiscal, de forma contrária aos dispositivos legais.
[12] As publicações da ANFIP são "Análise da Seguridade Social em 2004", de abril de 2005 e "Análise da Seguridade Social em 2005", de abril de 2006, disponíveis em www.anfip.org.br
[13] Esterilizar tem, aqui, o sentido comumente utilizado pelos economistas quando tratam de recursos monetários que são retirados de circulação. Uma parte dos recursos gerados pelo sistema de seguridade foi retirada dos fins aos quais se destina - saúde, assistência social e previdência -, e também de outro qualquer campo da aplicação que pudesse ser identificado por esta pesquisa a partir dos relatórios de execução orçamentária. Saiu, portanto, da circulação.
* Professora do Instituto de Economia - UFRJ
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