O verdadeiro patriotismo é o que concilia a pátria com a humanidade.
Joaquim Nabuco, 1849-1910

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sábado, 14 de junho de 2008

O Rio Grande do Sul não é uma ilha sem corrupção dentro do Brasil

Deu no Instituto Humanitas-Unisinos:
Entrevista especial com
André Marenco

Muitos gaúchos ainda mantinham viva a imagem de que no Rio Grande do Sul não havia corrupção. Enganaram-se. Um forte esquema de desvio de verbas de órgãos públicos estava sendo realizado no Detran. No entanto, a crise política e ética dentro do governo Yeda não foi deflagrada pela descoberta deste sistema de corrupção. Segundo o cientista político André Marenco, o atual governo passou por algumas rupturas de conflito que se tornaram, junto com as denúncias de corrupção, importantes elementos nessa crise. Em entrevista à IHU On-Line, realizada por telefone, André Marenco fez uma importante reflexão acerca desta crise, do futuro do governo do estado e das alianças que estão se formando para as próximas eleições e suas conseqüências políticas. “De fato, é uma crise ética que tem como um dos pontos geradores do próprio governo e o fato de este ter tardado muito para encará-la. A governadora perdeu muito tempo não reconhecendo as denúncias e se, de alguma forma, ela tivesse tomado alguma iniciativa mais cedo, isso poderia ter sido melhor resolvido”, afirmou Marenco.

André Marenco é cientista social, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, onde também realizou o mestrado e doutorado em Ciência Política. Atualmente, é membro da diretoria da Associação Brasileira de Ciência Política e professor da UFRGS. É organizador do livro Partidos no Cone Sul: novos ângulos de pesquisa (Rio de Janeiro: Fundação Konrad Adenauer, 2002), junto com a professora Celi Regina Jardim Pinto.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – As irregularidades descobertas no Detran mergulharam o governo Yeda em profunda crise política. Como o senhor analisa essa crise?

André Marenco – Essa crise tem dois elementos: um, que talvez anteceda o problema das denúncias, se refere à composição do governo. Desde o seu início, tivemos episódios de rupturas de conflito. Há o episódio do Berfran Rosado [1], que seria indicado secretário de planejamento e antes mesmo da posse não assumiu. Há o conflito com o secretário de segurança Ênio Bacci [2]. E, além disso, há duas derrotas na Assembléia relacionadas a projetos de ICMS. Existe um ponto de curto-circuito dentro do governo: o fato de a governadora montar um governo de coalizão com vários partidos estando no menor dentre eles. Num contexto desse tipo, é necessário que o governador tenha uma capacidade de negociação e de flexibilidade muito grande. Ora, isso não corresponde ao perfil da governadora, que é muito centralizadora e um tanto autoritária. Então, desde antes da eclosão das denúncias e da investigação da Polícia Federal, que chegou à Operação Rodin, o governo já vinha enfrentando crises, com várias derrotas dentro da Assembléia e/ou algumas dentro do próprio gabinete.

Uma das crises mais importantes dessa primeira fase foi aquela com o vice-governador. Então, esse é o problema: como combinar uma governadora de vocação centralizadora muito forte com uma coalizão que envolve um grande número de partidos, sendo o da governadora o menor? Portanto, ela não tem força política para estruturar o governo. A partir da Operação Rodin, essa sensibilidade ficou a mostra e aí poderia se acrescentar outro elemento ainda anterior às denúncias, que eram os baixos índices de aprovação. Para se somar a esses fatores, surge esse episódio de corrupção e parece que a governadora adota uma posição autista, ou seja, nos próprios discursos ela fala como se não houvesse uma grande crise e o governo andasse bem, revelando um comportamento completamente descolado do real.

A partir das denúncias, há alguns fatores a serem destacados. Primeiro: o governo tarda em reagir a elas. Há evidências de que o governo já sabia do envolvimento de alguns de seus membros com a investigação da Polícia Federal e depois com as denúncias. De modo geral, percebe-se que o governo não toma iniciativa: ele tentou desconhecer as denúncias de corrupção dentro de sua estrutura, e aí chegamos ao episódio da gravação do vice-governador. Gravação essa que, no meu entender, é não só legal como é, do ponto de vista ético, irreparável. Então, houve a decisão de demitir alguns componentes.

IHU On-Line – Por quê?

André Marenco – Porque era uma conversa pública, entre autoridades públicas, num prédio público e sobre um problema público e a partir de uma posição do vice-governador, que já era conhecida por todos. Ele vinha, há vários meses, manifestando denúncias de existência de corrupção dentro do governo, portanto sua posição era conhecida, apenas não vinha sendo levada em conta dentro do governo. Ele trouxe a público as evidências de corrupção dentro do governo. Isso potencializou a crise e, mais uma vez, o comportamento da governadora foi autista, porque a estratégia adotada de montar um Gabinete de Transição não traz nada de novo, ou seja, chamou os partidos para que com eles pudesse remontar o governo. Isso a governadora já fez pelo menos duas vezes antes, uma no início do governo e quando há alguns meses ela chamou o Cézar Busatto [3] para ser seu secretário da Casa Civil. Ela acreditava ser ele a figura que resolveria os problemas de articulação do governo. Ele não só não as resolveu, como também potencializou a crise.

IHU On-Line – Há alguma teoria da ciência política que explique essa falta de ética na política hoje?

André Marenco – Basicamente, ética é produto de controle e da percepção que os agentes públicos têm de que o risco de serem descobertos na eventualidade de uma postura ilegal é alto. Na medida em que isto ocorre, as pessoas tendem a adotar comportamentos regrados pela lei e isto cria uma cultura, significados e valores que nós chamamos de éticos. Ética não surge do nada, por geração espontânea e nem é produto, simplesmente, de uma pregação moral. Ela é resultado do tempo, de experiências e construções. No ponto zero, encontramos instituições que foram capazes de estabelecer controles eficazes e transparências, que simbolizam para os agentes públicos um alto risco de punição e isto baliza o seu comportamento. E daí vem a ética.

IHU On-Line – Como a questão da preponderância do privado sobre o coletivo contribui para a solidificação da corrupção em nosso país?

André Marenco – Sem dúvida, na medida em que temos instituições com baixos controles, isso incentiva uma lógica predatória, ou seja, agentes públicos e a sociedade comum pensam, vêem e encaram a coisa pública como algo a ser levado pelo primeiro que chega. Os políticos abusam dessa lógica, e os eleitores também, quando utilizam a desculpa de votar na pessoa e não no partido. Ou seja, há uma espécie de cumplicidade entre ambos. Os políticos são assim, porque os eleitores escolheram assim e tendem a votar em políticos que lhes oferecem vantagens materiais.

IHU On-Line – A governadora afirmou que o seu governo está passando por uma crise de ética. Como é possível pensar em ética num país com tanta desigualdade e impunidade?

André Marenco – De fato, é uma crise ética que apresenta como um dos pontos geradores o próprio governo e o fato de este ter demorado muito para encará-la. A governadora perdeu muito tempo não reconhecendo as denúncias e, de alguma forma, se ela tivesse tomado alguma iniciativa mais cedo, o problema atual poderia ter sido melhor resolvido. Você chamou a atenção para um aspecto muito importante: existe uma relação entre desigualdade e corrupção. Se pegarmos aqueles relatórios anuais da transparência internacional, que é uma entidade que a cada ano dá notas para cerca de 180 países em função da corrupção, e se olharmos o grupo de 35 países que têm os menores índices de corrupção, veremos que eles também tem elevados níveis de desenvolvimento econômico e social. Isso significa que, na verdade, a eliminação da corrupção endêmica exige uma coordenação por parte de instituições de controles, mas também de uma sociedade mais desenvolvida, com maiores níveis de renda, maior escolaridade, maior informação, menos desigualdade,

IHU On-Line – Como o conceito de homem cordial pode nos ajudar a compreender a atual conjuntura política gaúcha?

André Marenco – A noção de homem cordial, do Sérgio Buarque, permanece atual, no sentido de que ela procura identificar um padrão de comportamento. Segundo Buarque, ele está baseado na busca, na atualização de relações pessoais, na aversão aos procedimentos formais e na impessoalidade do estado moderno. Quando um eleitor diz que os partidos são todos iguais, portanto, ele não consegue diferenciá-los a partir das suas posições ideológicas, e passa a afirma que vota na pessoa e não no partido, no fundo ele está remetendo ao homem cordial do Sérgio Buarque. O apego ao vínculo pessoal é uma resposta à sua incapacidade de compreender a intencionalidade das instituições modernas, dos rituais formais da lei. É um indivíduo, por exemplo, que gosta de furar uma fila, não recusa a possibilidade de ter um tratamento privilegiado, mas, ao mesmo tempo, reclama da corrupção e das ações políticas. Isso é uma matriz cultural que permanece ainda hoje, embora numa escala menor do que aquela dos anos 1930, quando Buarque escreveu Raízes do Brasil.

IHU On-Line – No último dia 11, uma manifestação popular foi repreendida severamente pela Brigada Militar ao se dirigir ao Piratini. Como ficam os movimentos sociais na atual conjuntura política do estado e depois da nomeação do Coronel Mendes para a Brigada Militar?

André Marenco – Eu acredito que haja aí um problema nos dois lados. De um lado, os movimentos sociais deveriam verificar melhor a eficácia de suas ações. Se pegarmos uma pesquisa de opinião pública do início dos anos 1980, veremos que havia um alto nível de aprovação e de simpatia pelos movimentos sociais. Hoje, ao contrário, a posição da maioria é contra os movimentos, e a opinião pública pensa que os órgãos de repreensão pública precisam ser mais efetivos, o que dificulta o diálogo com a população. Por outro lado, não se deve aceitar também um comportamento truculento e violento da Brigada Militar. O que se viu ontem foram cenas de covardia contra os movimentos. É possível coibir e preservar a ordem pública sem necessariamente usar da violência. O que parece é que existe, não sei se do próprio novo comandante da Brigada Militar ou se do governo, uma orientação no sentido do uso descontrolado da violência. Isso alimenta os movimentos, no sentido de usarem manifestações dessa natureza e, por outro lado, é algo que se retroalimenta, o que é ruim. O poder público vem ultrapassando um nível eficaz de manter a ordem pública, pois é possível manter a ordem pública sem o uso de uma violência por vezes covarde e demasiada contra movimentos de opinião.

IHU On-Line – Como o senhor compreende as alianças que estão sendo feitas no Estado como, por exemplo, entre o PT e DEM, PC do B e PPS etc.?

André Marenco – Elas têm um efeito e conseqüências negativas, sobretudo aos olhos do eleitor. Eu acho que num país como o Brasil, com o número de partidos que nós temos, é importante que tenhamos coalizões, que os partidos façam alianças, seja para vencer eleições, seja para governar. Agora, o fato de as alianças estarem adquirindo cada vez mais um caráter inconsistente, do ponto de vista ideológico, a exemplo do que você mencionou, não necessariamente assegura o grau de coesão e firmeza para elas. Certamente, aos olhos do eleitor, cria uma confusão ainda maior, alimentando um sentimento de que os partidos são todos iguais, de que ideologias não são importantes e, sobretudo, uma dificuldade para se discernir as diferenças entre os partidos, o que é um elemento crucial na democracia. É fundamental que o eleitor possa fazer uma distinção entre os partidos e suas implicações políticas, caso eleja este partido. É importante fazer alianças, mas aquelas que envolvem partidos de esquerda e direita ao mesmo tempo de fato aumentam a confusão, pelo menos aos olhos do eleitor.

IHU On-Line – Qual é a sua opinião sobre o futuro político do estado?

André Marenco – A corrupção depende da eficácia de processos de controle para que ela apareça. Então, muitas vezes, nós somos levados a crer que quando aparece corrupção é porque antes não havia e agora existe. Mas o que existe agora é mais investigação, eficácia e controle, o que também não significa que exista mais ou menos corrupção no Rio Grande do Sul do que nos outros estados. Talvez aqui a eficácia da investigação seja, neste momento, maior. Agora, o dado novo é que, até recentemente, acreditávamos que o estado era imune à corrupção e estamos vendo que isso não é verdade. Na medida em que vem sendo investigados e duas instituições como a Polícia Federal e o Ministério Público tenham sido pró-ativas na investigação, os casos tem aparecido e a abundância de provas materiais indica inúmeras coisas. O Rio Grande do Sul não é uma ilha sem corrupção dentro do Brasil, embora não tenhamos elementos para dizer que tem maior ou menor nível de corrupção dos outros estados.

IHU On-Line – E como o senhor vê esse choque que o povo levou ao verificar que o Rio Grande do Sul tem corrupção assim como nos outros estados quando achavam que o estado era livre desse mal?

André Marenco – Pode até ser positivo, pelo fato de que pode implicar um grau de exigência maior. O problema seria se fossemos mais autocomplacentes, julgando que, em razão de nossa política pública ter traços diferentes (ser mais polarizada, com identidades partidárias maiores e mais fortes do que em outros estados, por uma distância ideológica entre os competidores maiores), ela estava imunizada em relação à corrupção. Isso nos dava uma maior autocomplascência, um autojulgamento muito mais benevolente. O fato de ter vindo à tona esses fatos graves de corrupção fará com que todos nós sejamos mais rigorosos em relação à classe política rio-grandense e às instituições públicas, o que é bom. Ou seja, descobrimos que há corrupção no estado e, portanto, isso nos obriga a sermos mais exigentes no futuro.

Notas:

[1] Berfran Rosado é deputado estadual. Gerenciou o setor de transportes da Metroplan (1987-1989), foi diretor administrativo da Secretaria Estadual de Obras (1990), assessor da Presidência da Assembléia Legislativa (1991-1992) e diretor administrativo e financeiro da Trensurb (1992-1994).

[2] Ênio Bacci é advogado e deputado estadual.

[3] Cézar Busatto foi Secretário Adjunto da Fazenda e Secretário Especial do Governo Pedro Simon/Sinval Guazzelli e secretário da Fazenda do Governo Britto. Foi também deputado estadual e secretário da Casa Civil do governo Yeda, do qual foi afastado depois da gravação da conversa que teve com o vice-governador Feijó.
Extraído de http://www.unisinos.br/ihu/index.php?option=com_noticias&Itemid=18&task=detalhe&id=14664 acesso em 14 jun. 2008.

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