O verdadeiro patriotismo é o que concilia a pátria com a humanidade.
Joaquim Nabuco, 1849-1910

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segunda-feira, 31 de março de 2008

Um vôo de galinha

Deu no Vermelho:
por Umberto Martins*
Vôo de galinha foi uma expressão cunhada por alguns economistas para caracterizar os ciclos de produção do capitalismo brasileiro desde que por aqui se instalou o que o presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), Marcio Pochmann, chamou de crise do desenvolvimento.

O problema começou com a crise da dívida externa, que eclodiu em 1982 através da moratória mexicana e foi causada em grande medida pela violenta alta dos juros nos EUA, promovida de maneira unilateral para salvar o padrão dólar. Nessa crise foi comprometido seriamente o desenvolvimento das economias nacionais em quase toda a América Latina.

Os ciclos de crescimento tornaram-se mais curtos e instáveis, as recessões se sucederam com maior freqüência que durante o nacional-desenvolvimentismo (1930-80) e o resultado geral foi um recuo sensível das taxas médias de crescimento do PIB, a hiperinflação e a estagnação da renda per capita. O encurtamento do ciclo de prosperidade neste período motivou a comparação com o vôo tímido da galinha, ao qual a metáfora contrapõe o vôo da águia, mais alto e mais longo.

Singularidade da crise

Anos atrás, alguns observadores ainda apontavam o exemplo do comportamento da economia estadunidense, aparentemente muito saudável, em contraposição ao desempenho medíocre do PIB no Brasil, também designado de stop and go (pára e arranca). Hoje, já não se fala mais nisto, pois quem parece estar experimentando um autêntico vôo de galinha são os EUA, com a economia mergulhada em grave e profunda crise.
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A recessão de 2001

Os EUA viveram sua última recessão em 2001. Aparentemente, foi uma crise breve, que teria durado apenas os dois primeiros trimestres, em que o valor global da produção recuou. Reagindo aos estímulos do governo e à redução dos juros, o PIB voltaria a apresentar sinais positivos no segundo semestre daquele fatídico ano, apesar dos atentados contra as torres gêmeas em 11 de setembro.
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Fim das ilusões

O vôo de galinha da economia estadunidense transparece quando comparamos o crescimento do seu último ciclo com o anterior. Se considerarmos que a recuperação econômica teve início no segundo semestre de 2001, como sugere o comportamento oficial do PIB, verificamos uma expansão de seis anos.
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Ciclo parasitário

Ao longo do festejado boom verificado na última década do século 20, o Departamento de Comércio dos EUA inventou o falso conceito de Nova Economia (depois amplamente difundido) para caracterizar o ciclo de prosperidade, sugerindo que as tecnologias que revolucionaram as comunicações, criando a internet, subverteram as leis que orientam o processo de reprodução do capitalismo ianque de tal modo que as crises cíclicas teriam sido abolidas. A falácia certamente serviu à propaganda imperialista e ao unilateralismo da Casa Branca, mas não resistiu ao tempo.
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Unidade de contrários

Talvez mais do que em qualquer outra época, o novo ciclo de crescimento iniciado em 2001 refletiu os efeitos do crescente parasitismo no processo de reprodução do capitalismo nos EUA. Estimulado pela dramática redução das taxas de juros e ampliação do crédito, o crescimento da economia após a recessão de 2001 foi puxado pelo consumo, que passou a representar 70% do PIB (equivalia, em média, a 62% do valor da produção nos anos 1980).
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Expansão distorcida

O extraordinário avanço do consumismo não teve contrapartida na produção industrial doméstica, configurando o que o economista americano Robert Brenner chamou de “uma via distorcida de expansão” e que podemos caracterizar também como um ciclo de reprodução parasitário (3). Registre-se que o consumo esteve em expansão, de forma inusitada, mesmo durante a recessão de 2001, o que à primeira vista pode parecer um contra-senso. Todavia, já se sabe que o hiato entre produção e consumo encontra sua explicação nas relações que o imperialismo americano estabelece com o resto do mundo e no seu histórico desequilíbrio comercial.
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Ascensão da China

Graças ao avanço do déficit comercial entre 1992 e 2001, o comércio varejista criou 2,4 milhões de empregos, um aumento de 19%. No mesmo período, a taxa de lucro do ramo subiu todos os anos, num total de 57%, tendo inclusive um aumento de 8% mesmo durante a recessão de 2001, de acordo com Brenner.
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Atividade improdutiva

Se quisermos aprofundar a compreensão do processo de reprodução do capitalismo norte-americano é indispensável recorrer ao juízo fundamental e muito útil de Karl Marx sobre o caráter essencialmente improdutivo da atividade comercial (4). Recordemos que o comércio não produz valor. A criação de valor, ainda hoje, ocorre principalmente nos setores industrial, cujo comportamento, no interior da potência capitalista hegemônica, tem sido desastroso. Assim como os juros, aluguéis e impostos, o lucro comercial é subtraído da mais-valia criada no setor produtivo durante o processo social de redistribuição dos lucros entre os vários ramos em que se repartem os investimentos capitalistas.
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Taxa de acumulação

Com um pouco de imaginação, não será difícil deduzir que a hipertrofia do consumo e do comércio varejista, assim como dos bancos, em associação com a crônica anemia da indústria, são sinais de que o excedente econômico (mais-valia, lucro) gerado no setor produtivo está estagnado ou em queda.
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Em contrapartida, “entre 1994 e 2000 o lucro do setor financeiro dobrou”, de acordo com Brenner. “Já que, no mesmo período, o lucro do setor empresarial não-financeiro” (incluindo o comércio, que como vimos acima vai muito bem) “só aumentou 30%, o lucro do setor financeiro, em relação ao lucro empresarial total, pulou de 23% para 39%”. Uma das expressões do parasitismo é o avanço espetacular das atividades improdutivas, que em nada contribuem para a formação de poupança interna, muito pelo contrário.

Corrosão da poupança

O consumismo, quando exacerbado, revela-se inimigo da poupança. Ao aumento do consumo das famílias correspondeu uma redução substancial da taxa de poupança familiar, que em poucos anos declinou de 8% do PIB para um percentual inferior a 1%. Assim, a outra face da baixa acumulação no setor produtivo é a corrosão da poupança interna, que se tornou negativa ou “chocantemente baixa” nas palavras do economista Joseph E. Stigritz, o que amplia a necessidade de financiamento externo e traduz o parasitismo da sociedade estadunidense. Por definição, a diferença entre poupança e investimentos internos é igual ao déficit em conta corrente, que em 2007 alcançou mais de 800 bilhões de dólares, ou cerca de 7% do PIB norte-americano, e está recuando agora em função da forte queda do dólar.
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Explosão do endividamento

Sem o respaldo da poupança interna, o consumo parasitário, ou seja, maior que a renda produzida no país, só podia ser bancado (como de fato foi) pela explosão do crédito e do endividamento. O aumento dos gastos militares promovido por Bush, por seu turno, ampliou o déficit e a dívida pública, de modo que o modesto crescimento do PIB desde 2001 foi muito mais uma expansão da dívida do que da produção.
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Crise do imperialismo

Marcado de forma acentuada pelo parasitismo, a crise nos Estados Unidos não deve ser encarada como mais uma crise cíclica de curta duração, da qual a potência hegemônica tende a sair com tranqüilidade e mais forte do que antes, como sugerem alguns analistas (5). A turbulência financeira atual “é expressão da crise do imperialismo” e esta não é apenas conjuntural, conforme já assinalou o presidente nacional do PCdoB, Renato Rabelo (6).
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Fim de uma era?

A reprodução do capitalismo norte-americano não pode ser bem compreendida se focalizarmos apenas o mercado interno. A forma com que a necessidade de financiamento externo do império vem sendo satisfeita determina o que Brenner chamou de padrão de desenvolvimento econômico internacional, que data da primeira metade da década de 1980 (quanto Tio Sam deixou de ser credor e passou a acumular sua gigantesca dívida externa).

“O aumento pronunciado da importação de produtos industrializados pelos Estados Unidos e do seu déficit comercial”, nota o economista estadunidense, “amplia o déficit norte-americano de transações corrente, expande o endividamento externo do país e alimenta o crescimento baseado em exportações de boa parte do resto do mundo, em especial do leste da Ásia”. Se o dólar continuar afundando, a hegemonia monetária dos EUA irá para o ralo e este padrão de desenvolvimento não será mais sustentável e terá de ser substituído. Não estamos diante de uma hecatombe ou de um colapso, mas o crescimento dos países ditos emergentes, com destaque para a China, em conexão com a redução da importância relativa do mercado estadunidense para o mundo, sugere que já ingressamos numa fase de transição e mudanças, embora ninguém possa antecipar o que virá, pois os partos e as transformações históricas não são indolores. Quem viver verá.


Notas

1-As referências do grande líder da revolução soviética ao conceito de parasitismo, que parece ter sido formulado originalmente pelo economista e historiador inglês John A. Hobson, podem ser encontradas no livro “O imperialismo, fase superior do capitalismo” e nos “Cadernos” de anotações acerca do tema, entre outros textos de W. I. Lênin.

2-No texto intitulado “Para a crítica da economia política”, de acordo com a tradução de José Arthur Giannotti e Edgar Malagodi, o pensador alemão disse o seguinte: “A produção é, pois, imediatamente consumo; o consumo é, imediatamente, produção. Cada qual é imediatamente o seu contrário. Mas, ao mesmo tempo, opera-se um movimento mediador entre ambos. A produção é mediadora do consumo, cujos materiais cria e sem o qual não teria objeto. Mas o consumo é também mediador da produção ao criar para os produtos o sujeito para o qual são produtos. O produto recebe seu acabamento final no consumo (...) Sem produção não há consumo, mas sem consumo tampouco há produção.”

3-A opinião de Robert Brenner pode ser conferida no seu excelente e profético ensaio intitulado “Novo boom ou nova bolha?”, publicado no livro “Contragolpes”, uma seleção de artigos da revista New Left Review, organizado por Emir Sader e editado pela Boitempo.

4- A diferenciação e interação entre o processo de produção e o processo de circulação das mercadorias foram exaustivamente analisadas por Karl Marx. No livro 3 de “O Capital”, em que disseca o processo global da produção capitalista, ele reitera suas idéias sobre o caráter eminentemente improdutivo do capital mercantil (comercial e financeiro). “O capital mercantil é capital que só funciona na esfera da circulação. O processo de circulação é uma fase do processo global de reprodução. Mas, no processo de circulação não se produz valor, nem mais-valia portanto. A mesma quantidade de valor experimenta apenas mudança de forma. Na realidade ocorre somente a metamorfose das mercadorias, a qual por si nada tem com criação ou variação de valor” (Karl Marx, “O capital”, livro 3, capítulo 16, CB, tradução de Reginaldo Sant´ana). O capital comercial, assim como o capital financeiro, apropriam-se, porém, de parte do lucro produzido no setor produtivo, que pode ser maior ou menor do que o lucro retido na indústria, na agricultura e nas atividades que produzem valor e mais-valia.

5- É o caso do professor José Luíz Fiori, cujo artigo intitulado “Crises e Hecatombes”, publicado pelo “Vermelho” dia 26 de março, (leia aqui) sugere que a hegemonia dos EUA, supostamente reafirmada no final dos anos 1970, ainda não está em questão.

6-Ver matéria publicada no “Vermelho” dia 19-08-2007 sob o título “Turbulência financeira é expressão da crise do imperialismo, diz Renato” (leia aqui)
* Umberto Martins, Jornalista, membro da Secretaria Sindical Nacional do PCdoB.
Leia na íntegra em http://www.vermelho.org.br/base.asp?texto=34977

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