O verdadeiro patriotismo é o que concilia a pátria com a humanidade.
Joaquim Nabuco, 1849-1910

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segunda-feira, 28 de abril de 2008

O Brasil mudou de lugar

Deu na Agência Carta Maior:
Nas últimas décadas, e a passo acelerado nos últimos anos, “o Brasil mudou de lugar”, ou de plataforma. No cenário político nacional, porém, há um "turvamento" das vistas que se recusa a enxergar isso.
Flávio Aguiar
Um dos problemas mais graves da política brasileira é que há uma espécie de “turvamento” das vistas no que se refere às relações entre as questões nacionais e as internacionais. Acontece que nas últimas décadas, e a passo acelerado nos últimos anos, “o Brasil mudou de lugar”, ou de plataforma.
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Falemos da saúde. Com todas as mazelas, o SUS, como conceito e como realização média, é avançadíssimo, não só em relação aos países pobres, como também em relação a países ricos e mais organizados do que o Brasil. A situação da saúde pública nos Estados Unidos, por exemplo, para os mais pobres, é calamitosa. Para os remediados, é desorganizada e caríssima.
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Os “menos” iguais hoje são menos desiguais do que antes; e os “mais” iguais hoje se sentem “menos mais iguais”. Podem puxar as estatísticas de plantão, mas o clima cultural que essa afluência nova dentro da sociedade brasileira sugere é conspícuo. Pode até ser que, num segundo momento, consolidada a afluência desses 20 milhões a um patamar mais amplo de consumo, uma parte deles se volte para políticas conservadoras que fechem os caminhos para os que ainda não saíram da vala comum da miséria. Mas isso é apenas uma possibilidade. Até porque duvido que alguém, nas oposições, tanto à esquerda quanto à direita, esteja pensando nisso como preocupação. A preocupação maior é ainda a de negar que isso tenha acontecido, ou de negar a sua pertinência ou ainda sua importância.
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A China é a nova potência mundial, sem dúvida, mas a custo de uma exploração do trabalho de fazer corar um capitão de indústria do século XIX. Na América Latina e no Brasil está acontecendo o contrário: a exploração, sem desaparecer, “por supuesto”, recua, e os pobres tornaram-se, pelo menos de momento, afluentes política, econômica e culturalmente.
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Por tudo isso pode-se imaginar o desastre de proporções continentais que será a volta da coligação PSDB – DEM, aliás, PFL, ao Palácio do Planalto em 2010. Esse lado da nossa oposição perdeu completamente sua inserção internacional, ou, se a tem, é com o que há de pior, como quando, ao realizar sua convenção, o finado (ou transgenicamente transformado?) PFL teve Aznar como convidado de destaque (quem sabe da próxima vez vem Berlusconi?). Pautado por comentaristas da nossa grande imprensa, cuja visão, além de reacionária, é de todo anacrônica, esse lado da oposição simplesmente não consegue mais “ver” o mundo, tanto quanto aqueles jornalistas também não o “vêem”. Falam de um mundo da carochinha, um “primeiro mundo” que não existe mais. Falam de um mundo de “países sérios”, onde, é óbvio, o Brasil não entra, sem se darem conta de que estão cuspindo para cima. Defendem um ideário, baseado ainda no Consenso de Washington, que tentam dourar com pílulas sociais recém descobertas, cujo invólucro feito às pressas não consegue disfarçar as receitas fanadas que defendiam há poucos anos nem o amargo desprezo que sentem por que o povão, parece, não os escuta.

A oposição à esquerda também não consegue mais “ver” o Brasil nesse “novo mundo”, em que tudo, até o futuro, está em rediscussão. No plano ideológico aferra-se a um universo doutrinário do passado, que perdeu o pé diante dos fracassos dos países ex-comunistas e também diante dos fracassos das recentes receitas neo-liberais. Na prática, tornam-se caudatárias das proposições moralistas, ex-udenistas, de uma direita que não tem moral para falar mal de ninguém.
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Mas como sabemos, é mais fácil um rico entrar no céu do que mudar a visão de mundo de alguém, a menos que esse alguém esteja disposto a aprender, ou que passe por grandes hecatombes. Mas não percamos a esperança: o Brasil hoje é uma catástrofe positiva, em meio à contínua hecatombe do esboroamento de um sistema econômico e político mundial que não consegue mais ter controle sobre as contínuas crises que provoca. Esse sistema não vai mudar tão cedo nem de uma hora para outra, mas pelas fendas que deixa aparecer vislumbra-se, quem sabe, um outro mundo possível. Uma dessas fendas é o Brasil, com a América Latina.
Flávio Aguiar é editor-chefe da Carta Maior.
Leia na íntegra em http://www.cartamaior.com.br/templates/colunaMostrar.cfm?coluna_id=3876

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