O verdadeiro patriotismo é o que concilia a pátria com a humanidade.
Joaquim Nabuco, 1849-1910

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segunda-feira, 21 de abril de 2008

Falta peito, falta coragem [ao Lula]

Deu na Revista do Brasil, n. 23:
Teclas capitais
Para Mino Carta, o país tem inúmeras soluções e um único problema: uma elite medieval, diante da qual o presidente Lula amarelou. Aos 74 anos, depois de comandar publicações ousadas e criativas, ele ainda quer escrever um livro chamado “O Brasil”
Por Paulo Donizetti de Souza e Vander Fornazieri
Mara Lúcia da Silva é coordenadora de produção da Carta Capital. Tinha 18 anos quando começou como secretária na redação da IstoÉ. “Secretária” costuma ser eufemismo para designar a faz-tudo do pedaço. Aos poucos, foi absorvida pelo então diretor de redação da revista, Mino Carta, que nunca mais lhe deu alforria. Vinte anos depois, Mara é a sua “escrava” preferida. É a encarregada, em meio às pesquisas iconográficas para os fechamentos semanais, de contornar o pavor do chefe a tecnologias. Hoje, pelo menos, já conta com ajuda de companheiros de redação para dividir o fardo de passar para o computador os textos que o veterano digita, ou melhor, datilografa, como se dizia antigamente. Até as respostas aos e-mails, acessados e impressos pelos escravos, são feitas a mão pelo chefe e digitalizadas pelos destemidos “escravos”, como Mino chama os intermediários entre ele e a vida real movida a computador – do qual não se aproxima para não ser devorado. Seria um sinal de conservadorismo? Afinal, além da secretária de duas décadas, há 40 anos o mesmo motorista o leva para cima e para baixo – sim, o criador de Quatro Rodas conta que nunca dirigiu nem sabe distinguir um Fusca de um Mercedes. Enquanto alguns o acusam de ser chapa-branca, ele puxa sem dó as orelhas do presidente Lula, que diz ser um sintoma de que alguma coisa começou a mudar no Brasil, mas de quem guarda uma sincera decepção pela falta de ousadia. “Para que agradar tanto aos banqueiros?”, reclama. Nesta entrevista, que por uma questão de espaço está mais recheada de detalhes no site, Mino Carta fala do preconceito do mercado publicitário contra quem critica o pensamento único. Fala das origens da passividade do povo, da selvageria do capitalismo, de cinema, gastronomia e de amor. Conservador nas miudezas e anárquico no atacado, ele não tenta se explicar, mas será facilmente entendido.

Aqui é o lugar onde você mais gosta de trabalhar de todos os que já passou?
Talvez seja onde a margem de criação é maior. Mas cada coisa se encaixa no seu tempo e à moldura das possibilidades oferecidas. Eu lancei o Jornal da Tarde, foi uma empreitada valiosíssima, mas estava trabalhando no Estadão. A autonomia que tive foi muito grande em termos de criação, paginação, texto, o jornal foi até bastante revolucionário, mas politicamente a margem de manobra era mínima. Você tinha de se adaptar aos pensamentos da casa. Na Veja eu contava com patrões idiotas, e isso ajuda um bocado. Os Civita não sabiam onde estavam, e foi fácil fazer uma revista que mereceu censura, que foi perseguida violentamente.
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Por que o jornalismo hoje não se compara com o que se fazia na década de 60, 70...
Ou mesmo antes. Rubem Braga e Joel Silveira cobriram a campanha dos pracinhas na Itália, na Segunda Guerra Mundial, de forma impecável, com textos dignos do melhor jornalismo contemporâneo do mundo. Se você pensa que o jornalismo brasileiro já teve esse tipo de herói, você põe as mãos nos cabelos! Cláudio Abramo...
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Dessa geração que você viu, com a qual trabalhou, conviveu esses anos todos, quem você destacaria?
Ah, tem muitos. Eu não gostaria de cometer injustiças. Quando eu voltei da Itália, em 1960, fui lançar a Quatro Rodas – sem saber dirigir, até hoje não sei, e não distingo um Volkswagen de um Mercedes. Tive ali repórteres extraordinários. Trabalhei com Zé Hamilton Ribeiro e Paulo Patarra, depois veio o Sérgio de Souza. O Hamilton Almeida, que foi um excelente repórter, Tão Gomes Pinto. Estive em contato com gente de altíssima qualidade, jornalistas como hoje não se fazem mais.
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Recentemente houve dois importantes “não-acontecimentos”: a batalha de Luis Nassif com a Veja e a saída de Paulo Henrique Amorim do IG. Como vê esses dois episódios?
Isso se encaixa exatamente na lógica do que eu disse. No Brasil você tem uma situação muito peculiar, que não existe em outros lugares que já saíram da Idade Média. Uma mídia compactamente unida apenas em torno da defesa dos interesses piores, aqueles da minoria branca, para usar a expressão do Cláudio Lembo. É muito simples: quem de alguma forma põe em xeque, critica a minoria branca e identifica esses interesses, que são os dela apenas, e não os do país, da sociedade brasileira, do povo brasileiro, quem faz isso é ignorado. E a técnica é a de sempre, antiqüíssima, usada inescapavelmente em todas as situações: “Ignore, porque aí não acontece, ninguém vai saber”. A estratégia, do ponto de vista deles, é extremamente eficaz. Saiu nesses dias um estudo em que você verifica que 58% da população brasileira não lê jornal, não lê livro, não vai ao cinema, não vai ao teatro. Alimenta-se só de TV, quem se alimenta. Há um distanciamento brutal em relação às notícias, à existência de fatos. Isso é muito claro no Brasil. E eles se aproveitam disso.
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Que arma a sociedade tem para enfrentar uma elite golpista?
Eu não tenho muitas esperanças em relação ao Brasil, infelizmente. E vocês vejam: país extraordinário, recursos absolutamente fantásticos, mais fértil do mundo, muito mais que a China. Onde você plantar, dizia o Pero Vaz de Caminha e é verdade, a coisa dá. Não tem cataclismo, o subsolo é rico em minérios, metade do ferro do mundo está aqui, agora descobrimos também petróleo onde não imaginávamos que houvesse. E temos a pior elite do mundo! A elite (desculpe a referência chula e mesquinha, talvez) da Daslu, de exibicionistas, cafajestes, cheios de si próprios, se acham notabilíssimos, inteligentes, elegantes, brilhantes. É um bando! É o país onde se fala mais palavrões na rua, desbocado, vulgar. Eu não tendo a enxergar o pecado no povo, o povo é o que pode ser. Os que mandam são os que não fizeram esforço algum para ser diferentes, para pensar em todo mundo, em vez de pensar somente neles próprios.
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E a imprensa noticiava isso?
A imprensa não funcionava se a greve envolvesse a categoria dos jornalistas, não funcionava e havia uma parte conspícua da imprensa que apoiava os trabalhadores. O jornal de maior tiragem na Europa era o L’Unità, do partido comunista. Estou falando dos anos 50. Havia três edições do L’Unità, em Roma, em Milão e em Turim, cada uma com sua redação. Hoje seria possível fazer um jornal só e mandar para qualquer lugar, mas nesse tempo não. Eram três redações distintas que tiravam 1,5 milhão exemplares por dia juntas. Portanto, era uma outra coisa.
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Mas os grandes centros ainda determinam os rumos do país, não?
Não sei. Sou bastante decepcionado com o governo Lula de vários pontos de vista, mas a eleição do Lula – e, muito mais que ela, a reeleição – mostra que uma mudança se dá. Talvez sem clara percepção por parte da maioria, mas os senhores do poder sabem perfeitamente da gravidade dessa mudança para eles. Tanto que malham o Lula automaticamente – não que ele não mereça, até porque ele faz tudo para agradá-los, sem conseguir, aliás. Mas eles sabem o significado da eleição de alguém que é igual ao povo brasileiro. Essa é a grande novidade. O povo brasileiro, que achava que o presidente da República tinha de ser bacharel e dormir de gravata, de súbito decide eleger um igual a ele, um operário, um tosco, despreparado, como diz a minoria branca. O Lula, a meu ver, não entendeu. Se tivesse entendido, teria ido bem mais longe do que foi. Por que agradar tanto aos banqueiros?
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Há quem diga que se Lula não tivesse cumprido os compromissos assumidos na Carta aos Brasileiros teria caído.
Eu duvido. Quem dá o golpe se o povo elegeu e reelegeu esse cara da forma como o elegeu e, sobretudo, como o reelegeu? A mídia compactamente contra ele, todo dia soltando informações sobre corrupção, envolvimentos terríveis com o que há de pior etc. etc., e assim mesmo ele foi reeleito. Quer dizer, a estratégia da minoria branca, que normalmente dá certo, desta vez falhou. Não acho que havia condições para nenhum tipo de golpe. Os grandes estadistas têm coragem. Claro, se ele me ouvisse dizer essas coisas, diria: “Ah, o Mino é um iludido, um anárquico”. Conheço o Lula há 30 anos, sei o que ele pensa. Em inúmeras vezes percebi que ele me achava incômodo. Sou amigo dele e gosto muito dele, o acho um sujeito extremamente dotado, além de tudo tem um QI muito bom. Mas falta peito, falta coragem.

Não acha que agora, no segundo mandato, ele está participando mais da política e sendo um pouco mais claro nas questões ideológicas?
Acho que o segundo mandato está pior que o primeiro. Fiz uma longuíssima entrevista com ele – 13 páginas – em novembro de 2005 e ele me disse: “Você sabe, Mino, que eu nunca fui de esquerda...” É um erro grotesco dos países de hoje, contemporâneos, dizer que a esquerda e a direta não existem mais. Como, se num país onde 5% vivem entre razoavelmente e bem demais e 95% vivem mal ou tragicamente? Como é possível dizer “aqui não existe esquerda e direita”? Tem uma metáfora magnífica que é a do metrô paulistano: se São Paulo tivesse um metrô digno de uma grande capital, como Londres, Paris, você teria muito menos carros na rua. O metrô é um transporte fantástico. Não! Eles cuidaram de construir túneis. Agora tem a ponte Espraiada e uma prefeita do PT chamou aquilo de Conjunto Viário Roberto Marinho, um salteador que infelicitou o Brasil, uma vergonha mundial, “jornalista”... Este é o único país que eu conheço onde jornalista chama o patrão de colega e o patrão consegue com o sindicato uma carteirinha de jornalista. Isso é Idade Média. Uma vergonha! Aqui temos diretores de redação por direito divino.

E como o país caminha para 2010?
Mal. Acho que se o Lula não se convencer de que não consegue fazer seu candidato, que não tem chance, que ele não transfere seu prestígio pessoal – e o Aécio já está dizendo isso –, ele vai optar por essa solução (mostra capa da Carta Capital de 2/4/2008, com reportagem abordando a possibilidade de Aécio Neves sair para presidente com Ciro Gomes de vice). E essa dupla (Aécio e Ciro) vai fazer as mesmas coisas que estão sendo feitas agora. Não imagine mudanças.
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Mas você vê um futuro com o Lula rompido com o PT?
Não posso crer. Acho que os partidos brasileiros não existem, são clubes recreativos para a minoria branca. Mas eu cheguei a achar que o PT tinha algo diferente. Nunca fui ligado a partido, mas apoiei muito o PT no seu nascimento, dentro das minhas modestíssimas possibilidades, porque sempre entendi que um partido forte de esquerda no Brasil, com coragem e determinação, poderia ter um papel muito importante. Mas o PT, em última análise, no poder, mostrou-se igual aos outros. É claro, o Brasil está crescendo no momento, mas está crescendo em cima de commodities, vamos ser claros! Isso é um futuro maravilhoso? Eu diria que não.
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Tem alguém no mundo que não esteja?
Não, acho que o mundo está submetido a essa idéia. E estamos vendo que o mundo piora a cada dia. Temos por exemplo a “arte moderna”, uma prova da imbecilidade do mundo.
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Você costuma navegar pelos blogs ou não se rendeu ao computador?
Não, tenho medo de computador. Computador me engole, ele tem uma bocarra que esconde os dentes, é coisa pior que tubarão. Se chegar muito perto, ele me engole. Já engoliu um monte de gente, principalmente a garotada, que vai pagar caro por isso.
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Você compartilha da opinião de Paulo Henrique de que a internet como meio de comunicação é o “must”?
Eu diria que o instrumento é uma coisa e o homem que usa é outra. É como a televisão. Não é um instrumento fantástico? Você pode usá-la com os piores propósitos ou com os melhores. Idem a internet.
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De que jornais você gosta?
Il Manifesto é excelente. Não gosto muito do El País, aos espanhóis falta senso de humor, eles levam tudo muito a sério. A mídia americana já foi excelente, hoje está muito mal, como os Estados Unidos. La República é um jornal muito bom, muito melhor que o El País. Guardian, Independent são excelentes, de centro-esquerda, não de esquerda, mas muito bons. O Le Monde acabou, hoje é um jornal claramente comprometido. Já foi importante, até pela tentativa de criar ali uma cooperativa de jornalistas, de passar por cima e eliminar a figura do patrão. Infelizmente, e isso é cada vez mais claro, qualquer empreendimento editorial tem de ser encarado como negócio. Precisa ter retorno, senão você fecha.
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Você não tem gravata amarela?
Em princípio, não tenho nada contra, depende de como você a usa. Num tom não muito agressivo, usada com um paletó de tweed irlandês, por exemplo, eu diria até uma gravata de lã, é aceitável. Mas eles usam com terno azul marinho! (risos)
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Você come aqui no seu vizinho, o Massimo?
Nas noite de quinta, mas vai mal o Massimo. Houve uma briga entre os dois irmãos. Morreu a mãe, que era o tecido conectivo, e desandou. O Massimo propriamente dito já saiu, está aí o irmão. Mas não está indo bem.
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Você deu uma boa receita de bacalhau no blog.
Aquele bacalhau é um bacalhau à siciliana, não é único. Eu entendo que há três pratos de bacalhau que são imbatíveis. À portuguesa clássico, com legumes cozidos na água com bastante azeite, e o próprio bacalhau cozido na água com azeite, no fogo lento, por oito minutos mais ou menos, com dentes de alho que depois você retira, ovo duro, azeitona preta. Você sente o bacalhau, não é encoberto por molho ou coisa assim. Depois tem o bacalhau à espanhola, aquele em camadas: batatas, cebolas, pimentão, tomate, bacalhau. É excelente. E o outro é esse à siciliana, que faço com molho de tomate.
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Você viu Jogos do Poder, em que Tom Hanks faz o papel de um deputado republicano que abasteceu a guerra do Afeganistão?
Um grande filme com o Tom Hanks é o Forrest Gump, que é uma metáfora dos Estados Unidos muito boa. (Sobre os Estados Unidos na guerra) assisti no último fim de semana em CVD, CDV...
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Depois de Quatro Rodas, Jornal da Tarde, Veja, IstoÉ, Jornal da República, Carta Capital, qual é a próxima cartada?
Não, não tem próxima. Eu estou pensando em escrever um livro, o terceiro, que seria “O Brasil”, falando do Brasil, o que é o Brasil para mim. Mas não escrevi nada ainda.
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Você tem mais filhos.
Tenho também uma filha (Manuela) e um enteado. Casei duas vezes. O primeiro casamento foi um episódio discutível, mas produziu dois filhos, e tem uma grande ligação entre nós. Depois tive um segundo casamento, muito bem-sucedido, muito feliz. Foram 29 anos de vida em comum. Infelizmente ela (Angélica) morreu, faz 11 anos, de câncer. Foi um baque. Era um casamento muito bom, mesmo. Eu tive, de certa forma, essa sorte e também padeci dessa desgraça. A sorte confrontada com esse momento é um golpe. Até hoje tomo todo dia remédio para estabilizar os humores. Eu sempre tive uma saúde de ferro. Nunca tinha tomado nem remédio para dormir, e durmo pouquíssimo. Aí eu comecei a querer me atirar pela janela. Faz 11 anos que eu tomo esse remédio.
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Seus filhos são casados?
Minha filha é divorciada, meu filho é muito bem casado, mas ele é um rapaz esperto, casou-se com 36 anos. Os dois são jornalistas. O meu enteado é casado e o filho dele do primeiro casamento, que está completando 16 anos, vive comigo. Era muito ligado à avó. A casa dele, para ele, é a nossa casa. Meu filho mora fora do Brasil desde os 15 anos. A minha filha é publisher disso aqui, é a única da família que lida com dinheiro. Eu me mantenho o mais possível longe, porque posso causar estragos absolutamente inimagináveis.
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Você poderia posar para umas fotos?
Mas como? Eu sou um velho ridículo... Onde você quer?
Leia na íntegra em http://www.revistadobrasil.net/entrevista.htm

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