O verdadeiro patriotismo é o que concilia a pátria com a humanidade.
Joaquim Nabuco, 1849-1910

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sábado, 23 de fevereiro de 2008

A nau dos dinossauros

Deu no Le Monde Diplomartique Brasil:
No crepúsculo da Era Bush, centenas de neo-conservadores norte-americanos embarcam num cruzeiro marítimo, durante o qual debatem o "sucesso notável" dos EUA no Iraque, a "inexistência" do aquecimento global e o "risco iminente" de dominação muçulmana sobre a Europa. Nosso repórter estava com eles
Johann Har
De frente para o Oceano Pacífico, pés na água, deixo-me levar pelo bate-papo casual tão apreciado pelos norte-americanos em férias. Uma bondosa senhora de Los Angeles está sentada a meu lado, sobre as rochas. Ela me fala de seu filho. Eu lhe pergunto se tem só um. “Sim. E o senhor, tem filhos, lá na Inglaterra?” Respondo que não e sua expressão é de assombro. “O senhor deveria pensar a respeito. Os muçulmanos se reproduzem como coelhos. Logo, logo, vão invadir toda a Europa.”
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Regularmente, a National Review, a Bíblia dos conservadores norte-americanos, organiza um cruzeiro para seus leitores, a fim de coletar fundos. Paguei 1.200 dólares para me juntar a eles. Obriguei-me a uma única regra de conduta. Quando um passageiro perguntar o que sou, responderei a verdade: jornalista. Meu objetivo: misturar-me à massa, para descobrir o que dizem os conservadores quando se imaginam a salvo de ouvidos indiscretos.
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Endireito as costas e cumprimento a primeira pessoa que passa na minha frente. É juiz, me diz, com essa presunção confortável que todo membro de sua profissão acaba um dia por adquirir. E canadense, confessa, em um tom um pouco mais contrito, além de presidente da associação Canadenses contra os Atentados Suicidas. Pergunto-me em voz alta sobre que futuro pode ter uma associação de canadenses contra atentados suicidas. Espantado, ele murmura que é um evidente sucesso.
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À minha esquerda, vejo um cinqüentão, a barba bem aparada. Ele é da Flórida. À minha direita, duas senhoras que vivem em Nova York e me lembram Dorothy Parker [1], sem os vapores do álcool. Moram em Park Avenue, explicam, com o sotaque um pouco seco da antiga burguesia norte-americana. “As senhoras moram perto do prédio das Nações Unidas?”, pergunta meu vizinho. A mulher assume um ar contrariado e responde que sim. “Eis um lugar que merece um atentado suicida”, graceja o homem. Todos riem discretamente.
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O caminho agora está aberto, todo mundo se anima e diz que os muçulmanos vão acabar com os franceses. E todo mundo acha isso muito engraçado. Os culpados habituais são rapidamente apontados. Jimmy Carter “praticamente traiu o país”. John McCain [2] “ficou louco” depois das torturas por que passou. Uma mulher conta que reza todos os dias para “agradecer a Deus por ter criado a Fox News”. Antes de encher seu copo de vinho, um homem se ajeita em sua cadeira e declara: “Este cruzeiro foi o melhor investimento que já fiz”.
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Há qualquer coisa estranha nessa discussão e leva alguns minutos até que eu compreenda do que se trata. Tudo que os conservadores negam em público, o fato de que o Iraque é um novo Vietnã ou que Bush defende unicamente os interesses de classe dos ricos, aqui é aceito e comentado como a verdade absoluta. Certo, reconhecem, a guerra no Iraque é novo Vietnã. Só que, desta vez, não vamos deixar esses esquerdistas covardes perdê-la. “A gente sempre ouve dizer que perdemos a Guerra do Vietnã. Mas ‘nós’ quem?”, pergunta Dinesh D’Souza [4], enfurecendo-se. “A esquerda venceu, exigindo a humilhação da América.” A bordo deste navio, nem sinal do Vietcongue ou dos 3 milhões de mortos vietnamitas. Tudo que resta é a traição dos esquerdistas. Sim, afirma D’Souza, voltando à política interna, “sem dúvida o programa dos republicanos defende alguns interesses de classe”. E é bastante natural: “O Partido Republicano é o partido dos winners (vencedores), o Partido Democrata defende apenas losers (perdedores)”.
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De repente, uma intervenção imprevista vem destruir esse doce consenso. Rich Lowry, jovem redator da National Review com cara de genro ideal, toma a palavra: “Se nossos concidadãos avaliam que vamos perder a guerra, é porque têm motivos racionais para pensar assim. Já pesaram todos os fatos”. O Vista Lounge mergulha imediatamente em um silêncio perplexo. “Eu adoraria acreditar que o simples fato de sermos uma superpotência nos protegeria da derrota. Mas isso não é verdade.”
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A linha de fratura que divide o conservadorismo norte-americano está se abrindo bem diante dos meus olhos. Após o intervalo, Norman Podhoretz [6] e William Buckley [7], dois pilares do Partido Republicano, começam a discutir [8]. Ninguém se apresenta para cortar a palavra de Podhoretz. “Tenho muitos velhos amigos na esquerda e diria que em breve os terei também na direita”, resmunga. Buckley se dirige ao moderador: “Tire o microfone dele ou a gente não termina nunca”. Isso é dito com um sorriso, mas o olhar é glacial.
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Buckley é um velho reacionário de modos polidos. Mas a dúvida o corrói. Fundou a National Review em 1955, quando o conservadorismo era encarado pelas elites como uma espécie de doença mental. Herdou de sua educação católica uma visão de mundo rígida e hierarquizada e é imune aos encantos da democracia. Durante a Guerra Fria, esteve ao lado de Podhoretz contra os comunistas ateus. Atualmente, cerca de vinte e quatro anos depois, sua visão não se conforma mais com a idéia de democratizar à força o mundo muçulmano. Quase invisível no início do cruzeiro, agora resolveu intervir e está bem decidido a se fazer escutar.
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O público aplaude Podhoretz. As dúvidas levantadas por Buckley deixaram o plenário um pouco desorientado. Ele não acabara de repetir exatamente o mesmo discurso da esquerda, dominante na mídia? Mais tarde, no jantar, meu vizinho de Denver chama Buckley de “frouxo”. Sua esposa balança a cabeça: “Buckley está muito velho”, conclui, levando o indicador à têmpora para sugerir a senilidade.
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Não é uma maneira muito otimista de defender sua progênie, mas ele afirma, com segurança: as grandes batalhas de sua geração foram ganhas. Isso não o impede de pensar no que Ronald Reagan teria feito no Iraque. “Reagan era um homem prudente. Creio que teria compreendido onde estava pisando e não teria envolvido os Estados Unidos na situação em que hoje nos encontramos. Acho que teria se certificado de que a ameaça a que expunha as tropas fosse restrita e controlável.” E explica que a estratégia de Reagan teria sido “pôr um tirano local” no governo do Iraque.
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“Não canso de dizer às pessoas que a Quarta Guerra Mundial começou”, explica, praguejando contra Buckley, George Will [10] e todos os traidores da causa que se recusam a ver a realidade diante do nariz. Segundo ele, a vitória está próxima. Depois de alguns minutos, a bordo desse navio embalado pela brisa tépida que vem do México, fico com a impressão de que nunca houve sofrimento em Bagdá.
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Ele me devolve um sorriso impassível e explica, com sua voz monótona: “Não me arrependo nem um pouco. A Câmara dos Representantes expressou sua vontade, o Senado expressou sua vontade e a Suprema Corte emitiu seu parecer. A Constituição funcionou de maneira notável”. Diante de uma defesa tão preguiçosa, eu o pressiono quanto a suas omissões e ele insiste em se valer de argumentos jurídicos, cada resposta uma variação do tema “não foi culpa minha”.
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Chegada a noite, com minha pele intacta, janto em companhia de uma personalidade da National Review: Kate O’Beirne. É uma loira imensa com a voz de uma atriz de comédia dos anos 1930 e os argumentos de um patriarca vitoriano da década de 1890. Dominando habilmente o dito espirituoso, ela ridiculariza o feminismo e “essas mulheres que querem mudar o mundo… para pior”. Cercada de admiradores deslumbrados, apresenta-nos seu marido, que se apressa a anunciar que é o assistente pessoal de Donald Rumsfeld. “As pessoas me perguntam o que estou fazendo aqui, já que ele se demitiu. Mas este cruzeiro foi organizado antes de tudo aquilo acontecer.”
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Os presentes balançam a cabeça solenemente e passamos à questão que ocupa todos os espíritos, o bilhão de muçulmanos que ameaçam pôr o mundo de joelhos. A idéia segundo a qual a Europa está sendo invadida constitui uma espécie de tema recorrente no cruzeiro. Pode-se fazer um cruzeiro para solteirões, um cruzeiro de danças de salão: eu faço o cruzeiro “os muçulmanos estão às nossas portas”. Todo mundo acha isso. Todo mundo diz isso. O homem que revelou tal verdade está sentado a algumas mesas de mim: Mark Steyn. Usa uma camisa colorida e óculos escuros puxados sobre a cabeça. A tese de Steyn, enunciada em seu novo livro, America alone, é simples: as “raças européias”, quer dizer, os brancos, “tornaram-se narcisistas demais para procriar em quantidade suficiente”, ao passo que os muçulmanos se reproduzem a pleno vapor.
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Os fatos, ou as dúvidas, não têm lugar a bordo desse navio. Com uma ou duas exceções, os passageiros encaram os “muçulmanos” como um grupo homogêneo de fanáticos obcecados com a sharia que quase estão tomando conta da Europa. Em uma semana, perguntaram-me nove vezes – eu contei – quando tomaria a decisão de fugir da Europa para me refugiar no único santuário ainda a salvo, os Estados Unidos.
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Nordlinger mostrou a eles. Decter mostrou a eles. Steyn mostrou a eles. Durante esse cruzeiro, todo mundo “mostrou” a eles e, por causa de meu passaporte europeu, todo mundo me mostrou. Será a última coisa que me mostrarão, no fim da viagem. Pisando no cais do porto de San Diego, quando dou as costas ao navio para ir embora, o juiz que conheci no primeiro dia pousa um braço afetuoso em meu ombro: “Vamos largar a Inglaterra para os muçulmanos. Melhor vir para a América”.
Leia na íntegra em http://diplo.uol.com.br/2008-02,a2200

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