O verdadeiro patriotismo é o que concilia a pátria com a humanidade.
Joaquim Nabuco, 1849-1910

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terça-feira, 13 de maio de 2008

“… e chamar-se-á Estado de Israel.”

Deu no Esquerda.net:
13 maio 2008

Por
Uri Avnery
Cada vez que ouço a voz de David Ben-Gurion pronunciando as palavras "Assim sendo, estamos hoje reunidos em assembleia...", lembro-me de Issar Barsky, irmão mais jovem de uma namorada que tive. A última vez que o vi, estávamos em frente ao refeitório do Kibbutz Hulda, numa 6ª-feira, dia 14 de Maio de 1948.
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Francamente, os discursos dos políticos em Telavive não nos interessavam muito. A cidade parecia-nos muito distante. O Estado, sabíamos, estava onde estávamos, em nós, connosco. Se os árabes vencessem, não haveria nem Estado, nem "nós". Se vencêssemos, haveria Estado. Éramos jovens e autoconfiantes, e nem por um momento duvidávamos de que venceríamos.
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Portanto, corri para o refeitório. A voz inconfundível de Ben-Gurion soava na rádio. Quando disse "...e chamar-se-á Estado de Israel"[1], que era o que me interessava saber, saí do refeitório.
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Issar foi morto alguns dias depois. Por isto lembro-me dele como estava naquele dia: 19 anos, sorridente, um Sabra cheio de inocência e alegria de viver.
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Veria um Estado que se desenvolveu muito mais do que nos seus mais entusiasmados sonhos de adolescente. De uma pequena comunidade de 635 mil almas (contados os 6.000 que morreriam com Issar naquela guerra), há hoje mais de 7 milhões de habitantes em Israel. Dois grandes milagres locais - o renascimento do idioma hebraico e a instituição da democracia israelita - continuam a ser realidade. A economia é forte e nalguns campos - a alta tecnologia, por exemplo - Israel está entre os primeiros do mundo. Issar sentir-se-ia entusiasmado e orgulhoso.
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Sobretudo, Issar descobriria, chocado, que a guerra brutal que o matou e me feriu, além de matar e ferir milhares de outros, continua, sem trégua. A guerra comanda toda a vida de Israel. Enche as páginas dos jornais e está nas chamadas de todos noticiários de televisão.
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Naquela noite realmente atacámos al-Qubab. Quando entrámos na vila, já estava vazia. Entrei numa das casas. A chaleira ainda estava quente, a mesa estava servida. Numa prateleira, havia fotos: um homem que visivelmente havia penteado cuidadosamente os cabelos, uma mulher em trajes locais, duas crianças. Guardo-os comigo, até hoje.
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Não há como escapar do facto histórico: o Dia da Independência de Israel e a Nakba ("catástrofe") dos palestinianos são dois lados da mesma moeda. Em 60 anos, Israel não conseguiu - de facto, Israel nem sequer tentou - criar outra realidade, para desatar este nó.
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Ao aproximar-se o 60º Dia da Independência, criou-se um comité para escolher um símbolo para o evento. Escolheram algo que teria hipóteses num concurso para escolher o símbolo da Coca-Cola ou do festival "Eurovisão" da canção.

O verdadeiro símbolo do Estado de Israel é outro, diferente, e não foi inventado por um comité de burocratas. Está posto no chão e pode ser visto de longe: o Muro. O Muro da Separação.
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Aparentemente, separa a israelita Kfar Sava e a palestiniana Qalqiliyah, fica entre Modi'in Illit e Bil'in. Entre o Estado de Israel (e mais terra roubada) e os Territórios Palestinianos Ocupados. Na realidade, separa dois mundos.
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O Muro da separação é a fronteira entre estes dois mundos.

O Muro não é só uma estrutura de arame e betão. Mais que tudo, o Muro - como todos os muros - é uma declaração ideológica, uma declaração de intenção, uma realidade mental. Os construtores declaram-se proprietários, alinham-se de corpo e alma num dos lados, o lado ocidental; e declaram que do outro lado do muro, do lado de "lá", começa o mundo oposto, o inimigo, as massas de árabes e outros muçulmanos.
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Há 102 anos, Theodor Herzl escreveu no seu livro-manifesto Der Judenstaat[3], do qual nasceu o movimento sionista, uma sentença carregada de significado: "Para a Europa, constituiremos lá [na Palestina] um sector do muro contra a Ásia, serviremos como linha da frente, uma vanguarda de cultura, contra a barbárie."
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A imagem é clara, ofuscante: Israel é parte da Europa (como a América do Norte), é parte da cultura, que é exclusivamente europeia. Do lado de "lá", a Ásia, continente bárbaro, sem cultura, e "lá" é o mundo árabe muçulmano.
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A máxima de Herzl não sobreviveu apenas como pensamento abstracto. O movimento sionista nasceu dela, no primeiro momento, e o Estado de Israel mantém-na viva até o dia de hoje.
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Um mês antes de eclodir a guerra de 1948, sete meses antes de o Estado de Israel ter sido oficialmente constituído, publiquei um folheto intitulado "War or Peace in the Semitic Region". Começava assim:
"Quando os nossos pais sionistas decidiram criar um "paraíso seguro" na Palestina, podiam escolher entre dois caminhos:

Podiam mostrar-se ao oeste da Ásia como o conquistador europeu, que se vê como cabeça-de-ponte da raça ‘branca' e senhor dos ‘nativos', como os conquistadores espanhóis e os colonialistas ingleses na América. Como, em seu tempo, os Cruzados, na Palestina.

A outra via era verem-se eles mesmos como um povo asiático que voltava à terra de origem - vendo-se como herdeiros da tradição política e cultural da região semita."
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Houve as invasões que vieram do Oeste, os gregos, os romanos, os cruzados, Napoleão e os britânicos. Invasões deste tipo visaram implantar uma cabeça-de-ponte. Estes invasores pensavam como cabeça-de-ponte. A região é território hostil, a população é inimiga, é preciso oprimi-la ou destruí-la. No fim, todos estes invasores foram expulsos.
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Os antigos israelitas classificam-se no segundo tipo. Embora haja dúvida sobre o Êxodo do Egipto narrado nos Livros de Moisés, ou sobre a Conquista de Canã narrada no Livro de Josué, pode-se aceitar que fossem tribos que vieram do deserto e se infiltraram-se nas cidadelas fortificadas de Canã que não poderiam conquistar, como se lê em Juízes1.
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Uma das peculiaridades nacionais dos israelitas é uma modalidade de discussão na qual todos os participantes, sejam de esquerda ou de direita, argumentam ‘por clinch', como no boxe: "Se não fizermos tal e tal coisa, desaparecerá o Estado de Israel!" Alguém imagina este argumento na França, na Inglaterra, nos EUA?
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A existência do Estado de Israel não me preocupa. O Estado de Israel existirá enquanto existirem Estados. O problema é: que tipo de Estado haverá em Israel?
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Ou um Estado que vive em paz com os Estados vizinhos, para benefício mútuo; uma sociedade moderna com direitos iguais para todos e sem miséria; um Estado que investe os seus recursos em ciência e cultura, na indústria e na preservação do meio ambiente; no qual as futuras gerações desejarão viver; fonte de orgulho para todos os cidadãos?

Que este seja o objectivo de Israel para os próximos 60 anos. Acho que este também seria o desejo de Issar, para o futuro de Israel.
Uri Avnery, 3/5/2008, "...Namely, the State of Israel", em Gush Shalom (GRUPO DA PAZ), na Internet, em http://zope.gush-shalom.org/home/en/channels/avnery/1209841842/
Tradução do blogue do Bourdoukan, adaptado para português de Portugal por Carlos Santos

[1] O texto da Declaração do Estabelecimento do Estado de Israel (14/5/1948) pode ser lido, em inglês, em http://www.mfa.gov.il/MFA/Peace%20Process/Guide%20to%20the%20Peace%20Process/Declaration%20of%20Establishment%20of%20State%20of%20Israel

[2] Entidades do folclore da região, que aparecem tanto na Bíblia hebraica quanto no Corão. Sobre "Gog e Magog" ver http://en.wikipedia.org/wiki/Gog_and_Magog (em inglês).

[3] O Estado judeu, 1896.

Leia na íntegra em http://www.esquerda.net/index.php?option=com_content&task=view&id=6711&Itemid=130

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